sexta-feira, 22 de março de 2013

O pingo d’água




I

Muita vez é a voz do silêncio. Pulsa um pulsar permeado de nada. Noutra, muito nos ensina, sobre esses começos inocentes que pouco a pouco vão se fazendo folhosos até se fazer impor. 

II

Se parece, às vezes ainda, ao remorso d’alma. Aquela vozear que obsta ao nosso esquecimento. Ali repetindo, de forma enfadonha. Ferindo-nos feito brasa que queima. Feito o arrependimento que raspa.

III

Dá uma atmosfera, também às vezes, talvez aí em especial para mim, de coisas de magoa. Coisas do passado impregnadas de nostalgia. Sei lá se pela semelhança ao pranto. Cá comigo penso que não. Ajuízo, sim, que quando estamos realmente tristes, abatidos diante das vicissitudes da vida, por um arrufo qualquer, ficamos a olhar o nada. Nada que ele, o pingo, muita vez se faz brado, marcando o tempo numa unidade complicada de se armar. De forma que nossa mente parva associa o estado plangente ao rumor do pingo. Então, noutra estação, mesmo que a melancolia não nos assalte, caso nos deparemos com ele, o pingo, atrapalhado que é, o nosso cérebro libera ao nosso corpo aquelas sensações taciturnas. Como não mais trazemos nas reminiscências, objetivamente, a lembrança daqueles acontecidos; somos então embriagados pela sensação de desalento. 

IV

Às vezes é orvalho, senhor possuidor de imponente miríade de cores. É belo, então. Noutras nem cor tem, sendo belo mesmo assim, cristalino, diáfano. Pode ser gelo, inclusive no céu. Viaja nas alturas celestiais e a tudo conhece. Quando enjoa se liquefaz e desce, podendo ser mavioso, acariciando, afagando levemente a terra, com cumplicidade terna; ou ser terrível, rasgando o céu, açoitando o chão, inundando tudo.

V

Caia bruto ou não, estando no chão, rola. Passeia por campos, bosques, cachoeiras, lagos e rios, e vai até o mar, enorme corpo azul. Viaja pelas profundezas. Conhece segredos. Até que ao se cansar novamente, ou talvez por saudades das alturas, vai saber! Emerge, quando, volátil que é, viaja até as nuvens novamente, reencontrando velhos amigos e revendo velhas paisagens.

VI

Nestas coisas de “camalear”, nos ensina muito. Como pode ser muitos sendo somente um? Na verdade em sua essência é um, porém uma essência assume enésimas formas. Reside aí um perigo, pois unicamente vemos as formas, e através dessas, quando muito, deduzimos ou intuímos a essência. O que não é tão fácil num mundo que vive a premiar as formas. Para nós, as chances de decepções, com essas coisas de perseguir formas, são muitas.

VII

Ademais, ensina também que devemos nos portar conforme o ambiente, a atmosfera. Se estiver frio, devemos ser gelo; se temperatura amena, líquido; se se está muito quente, vapor. Certas Forças estão acima das nossas, o que podemos fazer, nesses momentos, para o bem viver, é nos adaptar. Lição já de há muito tempo aprendida e posta em prática pelas abelhas, que na primavera coletam o pólen somente de flores mais nobres; porém se no inverno, de qualquer flor que lhes saltem as vistas fazem o seu alimento, com o mesmo “amor” de outrora.

VIII

O pingo sempre me divertiu muito, pelas navegações que amiúde faz após as chuvas nos cabos da rede elétrica, onde ele e outros tantos viajam. Talhes uniformes, distâncias simétricas. Se vez em quando aparece um mais ambicioso, querendo mais para si, logo fica mais pesado, e isso faz com que sua velocidade se acelere. Logo abalroa o colega da cabeceira, e assim não são mais dois, mas sim, um, involuntariamente, e logo, ato contínuo, nenhum, pois se espatifavam ao chão e  são capturados pela terra.

IX

Em menino, presenciava embates esplendidos, superando em muito as disputas automobilísticas de F1. Ainda naqueles fios de energia eu marcava em meu imaginário um pingo que me representaria. Lá no fio de cima, o que representaria aquele menino forte que tanto me enfadava e aborrecia na escola. Marcava a linha de partida e a de chegada, tendo como referência as nuvens do céu, que já exibia parte de sua estampa cerúlea. Se deslizassem lentamente perderiam a prova; se muito acelerassem, fatalmente se fundiriam ao da frente e o chão seria coisa certa. Era espetacular prova de regularidade. Ensinando-nos que na vida as coisas têm ritmo. Temos que respeitá-lo, senão fatalmente seremos absorvidos pelo fracasso.

X

Ao cair com insistência naquela velha pedra, violenta-a, arromba-a, perfura-a. Parece mentira. Que lição de resignação. Quem diria que o diminuto, pequenino, e até medíocre pinguinho, fosse capaz de tal façanha, perfurar a poderosa rocha.

XI

Na verdade o pingo d’água é tudo e nada. É nada dada a sua insignificância frente as nossas vistas, ao todo. É tudo quando descobrimos que, na verdade, “nada” não é o que é; mas sim, a bem dizer, um quase nada. Um “quase” que se ajunta a outros como ele, também “quase”, formando o todo. A água que lava, que mantém a vida cá entre nós. Lembrando-nos que todo começa é pequeno, que o que o torna grande é a composição, que o mais das vezes é lenta. Essa lição tanto pode ser usada para que atinjamos nossas metas, quando percebemos que cada “pingo” conseguido é deverás importante; como para nos resguardarmos contra os problemas que nos rondam. Pois percebemos que quase sempre, inicialmente, se nos mostram pequenos e de pouca ameaça, “quase” insignificantes. Mas é nesse momento, fragilizados, miúdos, que devemos suprimi-los, senão poderá ser tarde demais.

XII

Assim percebo que o pingo d’água é um mestre, que fala para quem está pronto. Prega observação, atenção, concentração, humildade, insistência. A mim, se desvenda assim. É o que por hora consigo entender, mas certamente, creio, fale coisas que ainda não percebo, pela a cegueira às camadas mais profundas que a imaturidade se me impõe.

XIII

No mínimo o pingo é um amigo, que cai insistente para nos trazer à realidade quando estamos absortos, hipnotizados em devaneios.

XIV

Verdade que diante de seu tombo, muitos acometidos pela parvoíce praguejam, contra o que pensam ser mero pulsar inconveniente, um penetra oferecido, que aparece na noite sem ser convidado, perturbando o sono.

XV

Ou seria realmente o pingo apenas um tombo inconveniente que caí, onde loucos como eu, que a tudo vinculam a metafísica, que não suportam a falta de essências nobres, para dar caráter transcendental à vida, que devaneiam, fantasiam, sobretudo em divagações que se perdem entre a experiência e o vácuo intelectual, adentram o pomar do conhecimento e dele retornam com frutos não comestíveis?

XVI

Penso que não. Penso que a essência está em tudo, e através de tudo nos comunica os segredos do viver melhor. Entendamos: tudo fala. Penso eu.


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