quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

visita

Aquele pastor de ovelhas era diferente. Gostava de passar a noite ao relento. Gostou especialmente daquela noite. Um céu tão claro e bonito. Ele viu um movimento diferente no estábulo. Chegou espiando, espiando. Assustou-se. Havia ali um casal e um bebe. O bebe mamava no peito da mãe. “O estábulo é seu?” Disse o homem, muito educado. “Não, não”. Respondeu o pastor. “Passamos a noite aqui por não encontrar outro lugar”, explicou o homem. O pastor ficou sem o que dizer. Trazer o filho e a mulher tão jovem e bonita para um lugar daqueles? Contudo, a alegria que via nos olhos deles, não era sempre que via. Repensou. Não disse mais nada. Espiou o bebe. Ele gostava de bebes. O bebe pareceu olhá-lo nos olhos. O pastor assustou-se. Como um bebe tão novinho tinha uma expressão daquela no olhar? O homem sentiu algo diferente. Algo bom, digo. Ficou ali até amanhecer. Algo naqueles três o atraía. Uma vontade de segui-los. De ser amigo deles. 

sábado, 19 de dezembro de 2020

equalização


quando o lobo uiva
solitário na alta
madrugada
 
o sono bate cascos 
tremem os
pinheiros
 
o homem duplica-se
triplica-se 
quadruplica-se
 
o menino tenta falar
mas a noite explode
em muitas vozes
 
uma vida pausa
para que outras
tentem acertar as
coisas

o corpo repousa
numa sombra
que não existia 
ontem

se o homem se 
visse ah se ele
se visse não se 
reconheceria

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Menina na Janela

a menina
na janela
tão bela
tão bela
 
a canção que escuta
aposto que diz
sou tão feliz
sou tão feliz
 
a brisa nos
seus cabelos
sorri-me
nos seus olhos
 
ah, essa menina
mexe comigo
estou perdido
estou perdido
 
vou subir
nessa janela
vou levar
essa menina
 
vai comigo
pela vida
será meu sorriso
será meu sorriso 
 
seguiremos
sem destino
no meu cavalo
invisível
 
levaremos seus
óculos redondos
e seu cachorro
dourado
 
e as minhas
tempestades
não serão
tão cinzas
 
essa menina
será minha cura
jamais minha
doença
 
seremos felizes
com coisas pequenas
nos nossos dias
de leve poema
 
ah, menina
me de sua mão
farei de tudo para
lhe merecer
o coração

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Limitado

 Meu filho me perguntou o que
Eu tinha para falar do Dieguito
Sobre os prós e contra, sabe
Estendo a todos o que respondi
Acho lindo o humano capaz de focar
na emoção, na genialidade do próximo
Daí todo resto vem
com compaixão, vem menor.
Quem foca no defeito é limitado
Olha uma tela de Gauguin e não vê
como Deus lhe falou ali
Cega-lhe maior à mente julgadora
a ciência da vida boêmia
e promíscua do pintor


segunda-feira, 23 de novembro de 2020

1979

 no riachinho tainhas nuas 
sobem na flor d'água 
para ver a tarde
na curva da estrada 
o cachorro amarelo
corre atrás das sombras 
dos pássaros em voo
o gato gordo olha o mundo
derretido de preguiça
o vento faz cócegas 
nas laranjeiras que 
tremem folhas de rir
a paisagem parece 
desbotada qual foto antiga
o berro das vacas parece triste 
o pio do gaviãozinho também
o menino olha para o céu 
derramado de nuvens amarelas
pensa amanhã neste horário 
já serei morador de cidade
será o céu de lá tão bonito
com um canivetinho ele risca
no tronco laranjeira: 1979

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

casa diferente

 

Eu gostava da casa cor-de-rosa, uma casa tão diferente. Tinha a frente para o fundo e o fundo para frente. O jardim crescia assim também, atrapalhado, ao inverso das gentes. Sem ser plantada lá abrolhou uma florzinha azul. A madrinha disse que foi obra de algum anjo, durante a noite. Eu gostei de pensar em anjos ali durante a noite, guardando a casa como cães silenciosos. Teriam deixado a florzinha em sinal. Depois de mais crescidinho cuidei que fosse a florzinha caso de semente viajada em pé de passarinho, que veio bicar o chão fresco das outras flores. Então a florzinha azul, de algum jeito, vinha na conta da ação de quem plantou as demais flores: mamãe e papai. Flores atraem flores. A esquerda arvorava-se a conteira. Sempre se enfeitava dependurada de canarinhos-ouro e continhas de brincos de orelha de moça. Do alpendre eu via um tudo. Um alpendre no oposto da estrada das gentes. Dali eu desvendava o Alto da Paz e aquela montanha como uma pirâmide azul no fim do mundo. Por ali só um alguém aparecia, de vez em vez. Um andarilho de nome Luizico. Isso por ser atrapalhado e então pensar invertido. Em são juízo ninguém atinaria aproximar-se da casa por aquele prumo. Eu gostava da corruíra, sempre quieta, bicando sozinha, pelas sombras. Desprovida de belo canto, de belo porte, de bela penagem. Que saudade sinto da casa cor-de-rosa. A volta com aqueles coisinhas, eu era galo, passarinho, minhoca, árvore e até pedra. Ali era ninho com capacidade de me nascer outras coisas. A paineira velha rangia à mínima brisa. Eu achava que aquilo era fala dela. Uma fala dolorida. E eu a entendia. Não na língua falada em palavras; mas na língua falada dos sentimentos. Para acalmá-la, às vezes eu ia lá, à beira do seu abismo. Abraçava-a. Com cuidado, lógico, para não me machucar nos seus espinhinhos de mamica de porca. Eu só lembrava das gentes quando o oco na barriga era cutucado pelo cheiro de bolo de fubá, café fresco, feijão refogado. O mundo das gentes tem muito barulho e é muito complicado. A língua das palavras faladas é complicada de mal-entendimentos. Sinto saudade daquela casa cor-de-rosa com portas e janelas de tábuas que me selavam dos enquadres das trevas. Saudade do alpendre invertido das gentes. Se bem que, hoje, isso tudo de nada me valeria. Uma vez descriançado, a gente só sabe ser gente, e isso é bem chato.

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

facilitude

na nossa mente conforma-se um extraordinário
sensações, sons, filmes, fumaças e pessoas
sim, sim, tantas são as pessoas
todas que conhecemos, ali, duplicadas
onde não morrem, apenas se desvanecem
sumir de todo a de ser raridade
conversamos uma vez com alguém e zás
uma cópia dela salta nesse nosso gasoso
como a Janete (a Jane), a prima paraguaia
uma cópia dela mergulhou em mim
do jeito que desenho que ela seja  
sempre olho para ela com vontade de colori-la mais
mas com o tempo trocando-me suas telas
outras coisas reclamando-me o olhar
sigo sem saber mais da prima do Py
que me intriga porque penso que o
olhar dela seja triste
isso me desregula
queria saber mais desse olhar
meu avô falava que tenho facilitude
para crescer exageros na cachola
e pensando com meus passarinhos
concordo. mas é caso fora de controle
se está crescido, pronto, existe-me
acho que dentro da gente tem
um mundo maior do que o outro
quem sabe a prima paraguaia queira me contar
que a tristeza que vejo não é dela
e que não há motivo algum para tristezas
nem da parte dela e nem da minha

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Risadões

Por aquele tempo em que eu morava em Cambuí, estive algumas vezes de férias na casa da minha tia Zilda, na Estiva. Seria entre 1978 e 1981. Era uma alegria. A casa tão cheia de flores. Flores por dentro e ao redor. Flores até nas blusas da tia. Muita comida boa, falatório alto e vivo, risadões. Ele me disse que mamãe “era como era” porque em criança ferveram um favinho de mel de marimbondo para tratar de uma asma dele. E que não viram; mas ao desvelo dos adultos, mamãe engoliu um marimbondo, que desde então mora na cabeça dela. Que quando ele cutuca, minha mãe marimbondeia (ou seja, sobra exageradamente brava com qualquer coisinha). Ela Sorria, eu sorria. Com os risadões dela congelados em minha mente eu ia para o pomar, envolvido com laranjas, passarinhos e caramujos. A tia me chamava quase de hora em hora. Queria que eu comesse. Eu agradecia, dizia-me satisfeito. Ele falava que criança não pode passar fome. Aliás, que ninguém pode passar fome, completava. Eu sorria, ela sorria. Eu voltava para o pomar dos caramujos. Ela perguntava o que eu tanto fazia lá. Como que eu ia explicar para ela que o pomar, tão afeito a terra, era-me mágico, com capacidade de abrir-me para outra dimensão. Eu apenas dizia: nada não, tia. Ontem mamãe ligou-me, emocionada. Disse que a tia partiu. Senti-me cortado de uma secura fria. O corpo da tia vai-se para o reino da terra, mas o perfume dela não. Será para onde ela vai haverá comida da boa? Ou será um muito melhor? Risadões certamente haverá. (Os risadões dela ecoam-me até hoje, misturados a uma lembrança de cheiro de terra fresca). A tia merece tudo que vier da luz. Merece uma dimensão muito, muito mais agradável do que é para uma criança um pomar sombreado repleno de laranjas, pintassilgos e caramujos.


sábado, 3 de outubro de 2020

PALAVRAS

I
Confesso minha
dificuldade com as palavras
até que tento me externar
por meio deles pois
é o que resta
 
mas meu sentimento é
espécie de bando de
canarinhos revoando
daquele jeito embolado sabe
como uma dança no ar
 
elaborar uma frase é para mim
como por esses passarinhos em fila
que graça tem quão limitante é
é quando a comunicação é pelo fala
então minha dificuldade é maior
 
reconheço na minha
incompetência
algo de preguiça
saber do que sinto pelo que digo
e como olhar o carnaval
pelo buraco da fechadura
limitante por mais
que me esforce
 
mas não desisto de tudo
senão passo por vazio
assim do sentimento inquieto
que enxameia abundante
externo gotas para você 
 
II
 
em cada palavra
há um mundo
um mundo que vai
se revelando
apenas para
quem está disposto
a chegar pertinho
 
de longe muitas
são parecidas
mas é engano
o ancião que
há em cada
uma delas
está disposto
a explicá-la
direitinho

mas apenas para
quem estiver disposto 
a achar um bocado
de tempo achegado
junto dele
 
III
 
as palavras geralmente
são bichos ariscos
escondem-se principalmente
de quem não tem 
paciência com elas
 
é quase impossível
recordar-se de palavras
como idiossincrasia
apanágio consentâneo
claudicar deletério
extemporâneo corolário
tergiversar augúrio
 
aí temos que nos
valer das lhe vem
palavras sem-vergonhinhas
como coisa, negócio, trem
 
IV
 
hoje li no livro 
Infância inventada
de Manoel de Barros 
algo que me fez bem
entendi a dificuldade
com  palavras como 
requisito para poesia
quem é bom de fala
parece ter certa ligação direta
entre a caixinha de pensar
e a maquininha de falar
então falam falam
outros (os poetas) pensam
e até que a coisa lhe saia pela
boca passa por um vale de
curvas sensações e imagens
falar significaria organizar
esse caos maravilhoso
em palavras e frases
não é fácil mas 
o resultado é diferente  

terça-feira, 29 de setembro de 2020

2020

venho receoso
a noite já cai, suja
dos postes escorrega uma
luz embaçada e vaporosa
mariposas giram giram
como sentissem dor
como quisessem fugir
mas não soubessem
para onde
 
ao longe passam pessoas
mascaradas apressadas
vão como enfeitiçadas
como não vissem nada
as luzes doentes
me fazem fantasiar
um franzido de maldade
nas sobrancelhas delas
 
uma freada tensa longe
eu olho olho olho
não vejo nada nada
uma mariposa bate em mim
meu coração salta
acelero aterrado
não gosto dos ecos
dos meus passos
parecem contagem
regressiva para algo ruim
 
de debaixo do viaduto
penso vir uns gritos
mas são inumanos
não tenho coragem de
de parar para olhar
mesmo porque passos
que vem do beco
me fazem acelerar
 
corre um brisa ácida
confiro minha máscara
uma janela expulsa uma
ponta amarelada de cortina
que agitada parece querer
me assombrar ou alertar
 
acelero, acelero
peito apertado
minha boca parece não
ser capaz de buscar 
o oxigênio que quero  
que saudade da minha terra
que saudade de tudo
como era

sábado, 26 de setembro de 2020

curto

ando sem apetite
para bulícios
nada disfarçado
de algo logo ali
 
na usura das
vaidades
quero é mais
atalhos
  
o caminho
do qual fogem
é o que busco
 
com tempo
para risadas
cafés quentes
e alvorecer de
corruíras 

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

De Quando Ainda Não Me Existia Luciana

ainda vai longe a festa da cidade
mas já estou sonhando com Luciana
a tarde passearemos na praça
alegres e as mãos dadas
os amigos terão inveja
as meninas torcerão o nariz
cochicharão quem é essa
tomarei Luciana pelas mãos
tomaremos um sorvete
nosso primeiro beijo será
perto do coreto, e gelado
nossos destinos estarão selados
viverei feliz com Luciana 
espero que seja bonita
mas se não for tão linda
nem ligo
bom coração haverá de ter
e também riso fácil
daremos voltas e voltas na praça
as mãos dadas
ela gostará de mim
mesmo que eu não seja tão forte
mesmo que eu não seja tão calmo
mesmo que eu não seja bonito
mesmo que eu seja estressado
mesmo que eu seja exagerado
mesmo que eu seja medroso
ela sorrirá dos meus defeitos
abraçara-me pedira calma
nem sei se a conhecerei Luciana
nesta festa da cidade
mas se não, tudo bem
tem o Natal
depois a Semana Santa
a outra festa
não tenho pressa
se bem que, confesso
seria bom que ela viesse logo
tenho tanto para dividir
tanto  para contar
tem os beijos que não quiseram receber
ela haverá de querer
ah meu Deus, quero apertá-la tanto
ela haverá de gostar de tudo
sempre sorrindo
onde estará minha Luciana
já andei confundindo-a
com outras por aqui
como ela será
terá sardinhas no rosto
espero que sim
acho um charme
será que também gostará raspa de arroz
qual será a cor dos olhos dela
será da cor que Deus quiser
faça chuva faça sol eu vou
na próxima festa, digo
tenho medo que Luciana vá
e eu não esteja lá
até pedi para mamãe comprar-me
uma camisa laranja-sol, na Ica
quero ser visto
não quero Lhe apressar, Deus
mas se for nesta festa
juro que levo em Aparecida
uma foto minha e de Luciana
ponho aos pés da Santinha
preciso muito das cores
que Luciana me trará
para o mundo

sábado, 19 de setembro de 2020

Tio Andrelino

O Tio Andrelino
Com sessenta e cinco
Disse que queria
A idade do pai Tonico
 
Com os oitenta e dois
Já na outra esquina
Mudou para os noventa
Da mãe Leontina
 
Agora já próximo
Da idade da mãe
Muda novamente
Diz que quer mais
 
Que é para frente
Que temos que ir
[sorri sorri]
Quer os cento e oito
Da Tia Nair

Bem se vê
Como é
Já-já quer os
Novecentos de Noé


Viva viva viva
O Tio Andrelino
Sempre alegre
Como um menino

Notando tucanos e
esponjinhas rosas
na previsão de tempo
ele sempre arrasa
[e a tia Alice
concorda]

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Hesitação

não sabe se vai
se não vai
ela não sabe
não sabe
não vai
sua vida 
é isso
um eterno
não ir
agora vou
não vou
vou 
não vou
por que não fui?
por que não fui?
teme a tristeza
não quer sofrer
mas pensa bem
já não está tão
triste assim?
uma eterna
sensação 
de navio que
evita o mar


sábado, 22 de agosto de 2020

MUDANÇAS

O Josino encostou o caminhão, desligou o motor. A poeira foi se assentando, invasiva. Um frio de gelo varreu minha mãe por dentro. Ele sentiu enjoo. Os homens foram amontoando tudo. Embarquem minhas coisas com jeito, ela movimentou os lábios como para dizer; mas a voz não saiu. Era como se ela não estivesse ali, como vivesse uma experiência fora do corpo. O peito sufocado e o estômago como cheio de pedras ajudavam a deixar a experiência ainda mais amarga. Numa manobra agressiva, arranharam a máquina de costura dela. Ela sentiu como lhe arranhassem o rosto. Não disse nada. Não tinha forças. Era máquina que comprou em solteira, com dinheiro de frangos e bordados. Era como houvesse um enxame de abelhas em sua mente. O Carlinhos chegou com um pacote nas mãos. Não tinha o riso de sempre no rosto. O gato passou correndo. Olha o gato! Olha o gato! Pega ele, Tadeu. Pega! Enfim a voz dela saiu. Mas saiu esquisita. Ela sentia como se outra pessoa falasse. Acabou que o Carlinhos pegou o gato. Prenderam o bicho numa caixa de papelão. Pronto! Disse alguém. Meu pai suspirou, olhou ao redor. Ele tinha que ser forte; mas na verdade não sabia se estava fazendo o certo. Fechou toda a casa. Minha mãe olhou as janelinhas e portas de tábuas fechadas. Que aterramento. Ela tirou o olhar da casa e achou estranho o terreiro sem suas galinhas, distribuídas aos vizinhos. Mas e das flores, quem cuidaria? Flores que foram se amontoando em volta da casa, ao longo dos anos. Mudas de uma comadre, de outra, das manas da Estiva, da própria mãe, já falecida. Mamãe tentou comer um bolinho. Eram bolinhos da madrinha que havia no pacote que o Carlinhos trouxe. Mamãe não conseguiu engolir. Ao invés de massa, o bolinho parecia de areia. O casal de canarinhos que sempre chocava ali, pousou nas roseiras. O machinho cantou. Mamãe olhou para ele. Parecia canto de despedida. Ela que achava a cantiga deles tão viva e alegre, ali achou triste. Um berro de vaca que veio de longe, lá dos Tio Otávio, pareceu triste também. Vamos Ilda, vamos! Meu pai gritou. O caminhão já funcionava. Enfim ela chorou. Havia uma vida ali. Sabia da história de cada cantinho. Ela tentou imaginar como seria em Cambuí. Achou apenas fumaça. Ela embarcou. Eu pulei na carroceria. Ajeitei-me num canto. O gato na caixa de papelão pulava desesperado. Também não queria se mudar. Começamos a rodar. Apenas elevei uma mão, em despedida ao Carlinhos. Ele também levantou, tentou sorrir. Ele seguiu o caminhão, a pé, até a curvinha da ponte. Foi ele quem fechou a parteira. Minha mãe chorava copiosamente. Mal sabia que dali uns anos choraria novamente pelo mesmo motivo. Quase o mesmo, digo. Por que de certa forma era o mesmo motivo sim. Ali chorava para não partir. Mas adiante, choraria para não regressar. 


sábado, 8 de agosto de 2020

Abrigo


Às vezes eu abria um risquinho de janela, durante a noite. O ranger das dobradiças da janela de tábuas era aterrorizante. O mundo lá fora era de arrepiar. Um sopro frio. Uns pios diferentes, principalmente do urutau. No brejo os coaxares mais lembravam gritos. Os cachorros corriam em volta da casa, desesperados, como a protegessem de um monstro nas vizinhanças. Tinha vez que eu escutava até baques de tiros. Meu pai falava em caçadores. Eu não me conformava de alguém ter coragem de sair de casa a noite, ainda mais para adentrar matas. Um dia meu pai preparava um cabo para machado e me chamou. Olhe aqui. Disse-me. Com um indicador duro mostrou chumbos cravados na madeira que vinha da matinha do nosso sítio. Então era verdade. Depois disso o meu medo de onça piorou. E dez vezes maior, à noite. Presença de caçadores para mim significava presença de onça. Acaso o tio Toninho não matou uma? Um medo que me tolhia o prazer de contemplar o rendado brilhante do céu noturno, que na roça é muito, muito, muito mais lindo. Mas com a tramela girada, janela fechada, eu me sentia muito bem e seguro. Sabe aquela sensação gostosa de que nada, nada poderá nos atacar. De que nada, nada nos faltará e para isso não precisamos fazer nada. Então... Não há riqueza maior. Eu tinha pena era dos bichos lá fora, sem um lugar seguro para passar a noite. Aquela casinha normal, tijolinhos débeis assentados em barro, um telhado que nem forrado era, a mim era bolha de proteção graças ao meu pai. Aquele esmalte de superproteção era coisa dele sempre presente, com suas histórias, com o rádio nas músicas sertanejas, brincalhão, sério. Quando ele saía, no máximo na boquinha da noite já ouvíamos em festa o tropel do cavalo. Era ele que voltava de alguma comprinha. Certeza que viria um pacote de balas para nós.

Que os pais signifiquem proteção aos seus filhos. Que lhes signifique abrigo.

Meu pai está de parabéns.

Cumpriu e cumpre muito bem sua missão.

Até hoje.


terça-feira, 4 de agosto de 2020

Completude



o vento treme os pinheiros

os menino brinca ao vento
o sol brilha o lençol
a mãe canta uma canção

"eu quero ter um milhão de amigos
para bem mais forte poder cantar"

o menino sente-se bem
uma alegria inconsciente
abundante, clara

Ele rola ao gramado
o cachorro também brinca
o pai martela o curral
assovia uma canção

"eu quero ter um milhão de amigos
para bem mais forte poder cantar"

o menino sente-se luz
nem sabe que experimenta
a felicidade por estar
inteiro no agora

quinta-feira, 9 de julho de 2020

véio doido

mora em mim um
véio meio doido
debochado que só ele
tudo lhe vai a brincadeira
por que sabe que
pouco vale a pena
muitos o veem infantil
e quem sabe seja mesmo
dou de ombros
vejo irmãozinhos
num sofrimento
cheio de argumentos
justificativas
azarados perseguidos
sofrem que sofrem
pelo que criam
por querelas sem solução
não quero explicar
o que faço é zombetear
quem sabe a lógica 
torta não se abale
e daqueles pântanos
não ecloda algo novo
(nem espero que entendam
que não é caso vil deboche
mas um jeito diferente
de contribuir)






sexta-feira, 3 de julho de 2020

Embrulhada


quando estudávamos na
escolinha da roça
éramos felizes com
a sopa feita da soma
do que levávamos
lenhas e legumes
os bancões de tábua
as letras de música da Elenice
lembro-me de asa-branca 
os desenhos de rosas
da mãe da Janete
a Tiana do Zé do tio Lauro
os bolos na casa do Afonso
o futebol ao pé da igrejinha
os canários cantando na varginha
os bagres no riacho da estrada
trocávamos cartões
por nos desenhados
lembrança do amigo tal
ah, que dias esplendidos
todas as séries numa sala só
depois disso a vida
só foi complicando

segunda-feira, 29 de junho de 2020

AGORA

O tempo
o tempo
Eu tinha 7
pisquei
eis me aqui
com 100

saudade de mamãe
ninguém pronuncia
meu nome tão bonito
quanto ela

enchia a boca
dizia:
Jose Roberto

ficou tão feliz
com minha felicidade
com a Maria
a Maria Benedita

a menina de 16
menina de olhos azuis
tão bonita lá da
Fazenda da Paz

nem pensei
comprei o primeiro
sapato e me casei

o padre João Guerra
disse que fiz bem

cuida bem dela,
ainda brincou
como não cuidaria?

Ah, tanta coisa
que lembro
da feitura da igreja
com a turma do Rigoto

do acidente da 
filha do Floriano
das entregas do Chico Telegra
das manhãs orvalhadas
no Paraná

"Eu nasci num recanto feliz
Bem distante da povoação
Foi ali que eu vivi muitos anos
Com papai mamãe e os irmãos"

lá lá lá lá lá
Êh música bonita
melhor cantar
melhor voltar

o Custódio
voltou da guerra
viveu bem
contou-me o segredo

a chave foi sair
da guerra também
dentro da
cabeça dele

nossa cabeça
é que nos mata

sinto o cheiro
do feijão com torresmo
da minha filha Tereza
melhor recompor-me

o segredo para
viver mais 100 
é gostar e estar
 no agora
a vida não gosta
de quem chora

quinta-feira, 11 de junho de 2020

o fantasma do sr kurt

o fantasma do sr kurt
entrou na máquina de lavar
a máquina ficou doida
não obedecia comandos
passou a agir por ela mesma
chamaram o caça-fantasmas
ele pensou, pensou
a máquina precisa de energia
ele desligou a tomada
o fantasma do sr kurt
deixou a máquina
foi para algum provisório
até encontrar outra máquina
(acho que não deveria, mas
vou falar. O nosso corpo,
essa coisa de água e vazio
é máquina onde há espirito
e energia. se acaba a
energia. Deixa-nos o
espírito, que não é
nosso, mas o que somos.
somos o espírito do sr kurt
o observador que vê
inclusive os pensamentos
maquinais voando
feito trailers de filmes.
não entendo isso totalmente.
mas aposto que é assim)