O Josino encostou o caminhão,
desligou o motor. A poeira foi se assentando, invasiva. Um frio de gelo varreu
minha mãe por dentro. Ele sentiu enjoo. Os homens foram amontoando tudo. Embarquem
minhas coisas com jeito, ela movimentou os lábios como para dizer; mas a voz
não saiu. Era como se ela não estivesse ali, como vivesse uma experiência fora
do corpo. O peito sufocado e o estômago como cheio de pedras ajudavam a deixar
a experiência ainda mais amarga. Numa manobra agressiva, arranharam a máquina
de costura dela. Ela sentiu como lhe arranhassem o rosto. Não disse nada. Não
tinha forças. Era máquina que comprou em solteira, com dinheiro de frangos e bordados.
Era como houvesse um enxame de abelhas em sua mente. O Carlinhos chegou com um
pacote nas mãos. Não tinha o riso de sempre no rosto. O gato passou correndo.
Olha o gato! Olha o gato! Pega ele, Tadeu. Pega! Enfim a voz dela saiu. Mas
saiu esquisita. Ela sentia como se outra pessoa falasse. Acabou que o Carlinhos
pegou o gato. Prenderam o bicho numa caixa de papelão. Pronto! Disse alguém.
Meu pai suspirou, olhou ao redor. Ele tinha que ser forte; mas na verdade não
sabia se estava fazendo o certo. Fechou toda a casa. Minha mãe olhou as
janelinhas e portas de tábuas fechadas. Que aterramento. Ela tirou o olhar da
casa e achou estranho o terreiro sem suas galinhas, distribuídas aos vizinhos.
Mas e das flores, quem cuidaria? Flores que foram se amontoando em volta da
casa, ao longo dos anos. Mudas de uma comadre, de outra, das manas da Estiva, da
própria mãe, já falecida. Mamãe tentou comer um bolinho. Eram bolinhos da
madrinha que havia no pacote que o Carlinhos trouxe. Mamãe não conseguiu engolir.
Ao invés de massa, o bolinho parecia de areia. O casal de canarinhos que sempre
chocava ali, pousou nas roseiras. O machinho cantou. Mamãe olhou para ele. Parecia
canto de despedida. Ela que achava a cantiga deles tão viva e alegre, ali achou
triste. Um berro de vaca que veio de longe, lá dos Tio Otávio, pareceu triste
também. Vamos Ilda, vamos! Meu pai gritou. O caminhão já funcionava. Enfim ela
chorou. Havia uma vida ali. Sabia da história de cada cantinho. Ela tentou
imaginar como seria em Cambuí. Achou apenas fumaça. Ela embarcou. Eu pulei na
carroceria. Ajeitei-me num canto. O gato na caixa de papelão pulava
desesperado. Também não queria se mudar. Começamos a rodar. Apenas elevei uma
mão, em despedida ao Carlinhos. Ele também levantou, tentou sorrir. Ele seguiu
o caminhão, a pé, até a curvinha da ponte. Foi ele quem fechou a parteira.
Minha mãe chorava copiosamente. Mal sabia que dali uns anos choraria novamente pelo
mesmo motivo. Quase o mesmo, digo. Por que de certa forma era o mesmo motivo
sim. Ali chorava para não partir. Mas adiante, choraria para não regressar.
sábado, 22 de agosto de 2020
MUDANÇAS
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