sábado, 22 de agosto de 2020

MUDANÇAS

O Josino encostou o caminhão, desligou o motor. A poeira foi se assentando, invasiva. Um frio de gelo varreu minha mãe por dentro. Ele sentiu enjoo. Os homens foram amontoando tudo. Embarquem minhas coisas com jeito, ela movimentou os lábios como para dizer; mas a voz não saiu. Era como se ela não estivesse ali, como vivesse uma experiência fora do corpo. O peito sufocado e o estômago como cheio de pedras ajudavam a deixar a experiência ainda mais amarga. Numa manobra agressiva, arranharam a máquina de costura dela. Ela sentiu como lhe arranhassem o rosto. Não disse nada. Não tinha forças. Era máquina que comprou em solteira, com dinheiro de frangos e bordados. Era como houvesse um enxame de abelhas em sua mente. O Carlinhos chegou com um pacote nas mãos. Não tinha o riso de sempre no rosto. O gato passou correndo. Olha o gato! Olha o gato! Pega ele, Tadeu. Pega! Enfim a voz dela saiu. Mas saiu esquisita. Ela sentia como se outra pessoa falasse. Acabou que o Carlinhos pegou o gato. Prenderam o bicho numa caixa de papelão. Pronto! Disse alguém. Meu pai suspirou, olhou ao redor. Ele tinha que ser forte; mas na verdade não sabia se estava fazendo o certo. Fechou toda a casa. Minha mãe olhou as janelinhas e portas de tábuas fechadas. Que aterramento. Ela tirou o olhar da casa e achou estranho o terreiro sem suas galinhas, distribuídas aos vizinhos. Mas e das flores, quem cuidaria? Flores que foram se amontoando em volta da casa, ao longo dos anos. Mudas de uma comadre, de outra, das manas da Estiva, da própria mãe, já falecida. Mamãe tentou comer um bolinho. Eram bolinhos da madrinha que havia no pacote que o Carlinhos trouxe. Mamãe não conseguiu engolir. Ao invés de massa, o bolinho parecia de areia. O casal de canarinhos que sempre chocava ali, pousou nas roseiras. O machinho cantou. Mamãe olhou para ele. Parecia canto de despedida. Ela que achava a cantiga deles tão viva e alegre, ali achou triste. Um berro de vaca que veio de longe, lá dos Tio Otávio, pareceu triste também. Vamos Ilda, vamos! Meu pai gritou. O caminhão já funcionava. Enfim ela chorou. Havia uma vida ali. Sabia da história de cada cantinho. Ela tentou imaginar como seria em Cambuí. Achou apenas fumaça. Ela embarcou. Eu pulei na carroceria. Ajeitei-me num canto. O gato na caixa de papelão pulava desesperado. Também não queria se mudar. Começamos a rodar. Apenas elevei uma mão, em despedida ao Carlinhos. Ele também levantou, tentou sorrir. Ele seguiu o caminhão, a pé, até a curvinha da ponte. Foi ele quem fechou a parteira. Minha mãe chorava copiosamente. Mal sabia que dali uns anos choraria novamente pelo mesmo motivo. Quase o mesmo, digo. Por que de certa forma era o mesmo motivo sim. Ali chorava para não partir. Mas adiante, choraria para não regressar. 


sábado, 8 de agosto de 2020

Abrigo


Às vezes eu abria um risquinho de janela, durante a noite. O ranger das dobradiças da janela de tábuas era aterrorizante. O mundo lá fora era de arrepiar. Um sopro frio. Uns pios diferentes, principalmente do urutau. No brejo os coaxares mais lembravam gritos. Os cachorros corriam em volta da casa, desesperados, como a protegessem de um monstro nas vizinhanças. Tinha vez que eu escutava até baques de tiros. Meu pai falava em caçadores. Eu não me conformava de alguém ter coragem de sair de casa a noite, ainda mais para adentrar matas. Um dia meu pai preparava um cabo para machado e me chamou. Olhe aqui. Disse-me. Com um indicador duro mostrou chumbos cravados na madeira que vinha da matinha do nosso sítio. Então era verdade. Depois disso o meu medo de onça piorou. E dez vezes maior, à noite. Presença de caçadores para mim significava presença de onça. Acaso o tio Toninho não matou uma? Um medo que me tolhia o prazer de contemplar o rendado brilhante do céu noturno, que na roça é muito, muito, muito mais lindo. Mas com a tramela girada, janela fechada, eu me sentia muito bem e seguro. Sabe aquela sensação gostosa de que nada, nada poderá nos atacar. De que nada, nada nos faltará e para isso não precisamos fazer nada. Então... Não há riqueza maior. Eu tinha pena era dos bichos lá fora, sem um lugar seguro para passar a noite. Aquela casinha normal, tijolinhos débeis assentados em barro, um telhado que nem forrado era, a mim era bolha de proteção graças ao meu pai. Aquele esmalte de superproteção era coisa dele sempre presente, com suas histórias, com o rádio nas músicas sertanejas, brincalhão, sério. Quando ele saía, no máximo na boquinha da noite já ouvíamos em festa o tropel do cavalo. Era ele que voltava de alguma comprinha. Certeza que viria um pacote de balas para nós.

Que os pais signifiquem proteção aos seus filhos. Que lhes signifique abrigo.

Meu pai está de parabéns.

Cumpriu e cumpre muito bem sua missão.

Até hoje.


terça-feira, 4 de agosto de 2020

Completude



o vento treme os pinheiros

os menino brinca ao vento
o sol brilha o lençol
a mãe canta uma canção

"eu quero ter um milhão de amigos
para bem mais forte poder cantar"

o menino sente-se bem
uma alegria inconsciente
abundante, clara

Ele rola ao gramado
o cachorro também brinca
o pai martela o curral
assovia uma canção

"eu quero ter um milhão de amigos
para bem mais forte poder cantar"

o menino sente-se luz
nem sabe que experimenta
a felicidade por estar
inteiro no agora