Imagine uma casa cheia, um povão falando, o tilintar de copos e talheres. Contudo uma menina se sente só. Pensa que se desaparecesse ninguém lhe daria pela falta. Ela imagina o Espaço sideral como um local frio, sem cheiro, quieto, escuro. Um nada. Eternamente, um nada. E também é assim que ela se sente por dentro. Um nada. Eternamente, um nada. Veste o vestidinho vermelho que foi da irmã mais velha. Acha-o tão bonito. Até fez em si umas tranças num lado dos cabelos, para combinar. A irmã fazia tanto sucesso com o vestidinho. Porém ninguém lhe fala do vestido, ninguém lhe fala das tranças. Ela come e come. O que mais lhe resta numa festa onde lhe veem sem enxergar. Cai um pedaço de bolo grudento em seu vestido. Mandam-lhe que se limpe. Ela fica surpresa por ser vista. Faz um teste. Vira intencionalmente um copo de refrigerante na mesa. Veem-na. Gritam que preste atenção. Depois outro teste. Estoura a correia da sandália por querer, embora fazendo parecer acidente. Veem-na outra vez. Uma tia gorda ainda diz com uma boca cheia de ar, bufando, ô menina desastrada. Ela gosta de ser vista, dos olhos das pessoas lhe mirando. Não lhe é comum. Excita-lhe. Dá-lhe sensação de existência. Algo quente e agitado. Bem diverso do gelado do Espaço sideral. Ali ela aprende como fazer para ser vista.
sábado, 30 de janeiro de 2016
A MENINA DO VESTIDO VERMELHO
Imagine uma casa cheia, um povão falando, o tilintar de copos e talheres. Contudo uma menina se sente só. Pensa que se desaparecesse ninguém lhe daria pela falta. Ela imagina o Espaço sideral como um local frio, sem cheiro, quieto, escuro. Um nada. Eternamente, um nada. E também é assim que ela se sente por dentro. Um nada. Eternamente, um nada. Veste o vestidinho vermelho que foi da irmã mais velha. Acha-o tão bonito. Até fez em si umas tranças num lado dos cabelos, para combinar. A irmã fazia tanto sucesso com o vestidinho. Porém ninguém lhe fala do vestido, ninguém lhe fala das tranças. Ela come e come. O que mais lhe resta numa festa onde lhe veem sem enxergar. Cai um pedaço de bolo grudento em seu vestido. Mandam-lhe que se limpe. Ela fica surpresa por ser vista. Faz um teste. Vira intencionalmente um copo de refrigerante na mesa. Veem-na. Gritam que preste atenção. Depois outro teste. Estoura a correia da sandália por querer, embora fazendo parecer acidente. Veem-na outra vez. Uma tia gorda ainda diz com uma boca cheia de ar, bufando, ô menina desastrada. Ela gosta de ser vista, dos olhos das pessoas lhe mirando. Não lhe é comum. Excita-lhe. Dá-lhe sensação de existência. Algo quente e agitado. Bem diverso do gelado do Espaço sideral. Ali ela aprende como fazer para ser vista.
terça-feira, 26 de janeiro de 2016
BONEZINHO
O menino chega ajeitando
O bonezinho feio
As visitas tão grã-finas
Ele tão sem jeito
A mãe, envergonhada
Pede que retire o bonezinho
Ele finge que não escuta
A mãe insiste, insensível
Ele obedece, cara de dor
Olhos ao chão
O bonezinho, à altura do
Umbigo segurado a duas mãos
Sentindo-se nu
Sabe agora todos saberão
Que a feiura não é pelo
Bonezinho azul
terça-feira, 19 de janeiro de 2016
Florzinhas Amarelas
Alegrias são
Florzinhas amarelas
Nascidas num vaso
De bondades
O que nos cabe
É a parte da bondade
O resto é
Com a Natureza
sábado, 16 de janeiro de 2016
Fantástico
A Filomena sempre ia lá em casa,
na roça. Um dia me viu desenhando. Pediu para ver. Disse que eu desenhava bem,
mas que meus desenhos eram comuns. Que tinha uma neta que também desenhava,
contudo os desenhos dela eram bem diferentes. Eram "coisas lindas".
Ela representava diferente do que via, como fossem coisas de outros mundos. Ela
prometeu que na próxima ida levaria um caderno da neta para eu ver. Então me
pus a pensar como seriam aqueles desenhos. Comecei a misturar, criar formas que
não existiam, por cores diversas do que normalmente seria, imaginar a vida
acontecendo em outro planeta, desenhar sensações. Enfim, afundei nesse mundo da
imaginação. Certo dia chegou a Filomena com o tal caderno de desenho. Foi uma
decepção. Eram desenhos infantis. Eram os olhos da Filomena que davam àqueles
rabisquinhos a mágica que ela me passou. Mostrei meus novos desenhos a ela.
Fantástico, foi o que ela disse.
terça-feira, 12 de janeiro de 2016
A VIZINHA DA VIZINHA DA CASA COR-DE-ROSA
O chão já estava limpo, muito limpo; mas mesmo
assim a vizinha da vizinha da casa cor-de-rosa continuava varrendo. Chegou o
vizinho da casa cor-de-rosa num fusca azul da cor do céu. A vizinha brincou: “comprou?”
Ela achou que fosse emprestado. Ele disse: sim, comprei. Ela se engasgou. Um susto, de repente. Pigarreou, tentou
sorrir. Disse apenas “a vizinha vai gostar”. No “tar” do gostar ela fez como
escarrasse.
Ato contínuo ela entrou agitada, cega, uma coceira
no corpo inteiro, um abafamento. Os chinelinhos Havaianas estalavam à sola dos
seus calcanhares. A vizinha ficaria feliz, sim, foi pensando. Num havia tempo
comprara TV em cores. Geladeira já tinha há muito. E agora automóvel. O que
mais quereria. Viu o filho, roupinha velha, assistindo desenho na TV preto e
branco. Ralhou com ele por entre os dentes. “O que foi”, disse o menino. “Vai
pentear esses cabelos”, disse com raiva; e insistiu mesmo a alegação dele de
que já havia se penteado. O "vai já" dela pareceu latido.
Já ao quintal notou o gato da vizinha da casa
cor-de-rosa debaixo do seu limoeiro. Ele sempre vinha ali. Nunca a incomodou.
Mas naquela manhã, incomodou. Uma coisa ruim lhe veio à garganta, uma cegueira
estrangulada. Desferiu uma vassourada contra o gato. Um golpe violento. Que
ódio. Que ódio. Mas ele se safou. Fugiu. Ela bateu para matar. Errou.
Depois ela entrou sem entender direito porque de
repente a manhã lhe parecia tão sem perfume, azeda. Pensou ouvir risos entre
palmas da vizinha da casa cor-de-rosa. Bem aí o nublado ao peito transformou-se
em acidez exagerada lhe excedendo ao estômago, tornando-se queimação
incendiaria. Ainda pensou, “oh, meu Deus. O que será com meu estômago. Acho que
não devia ter tomado tanto café.”
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