sexta-feira, 7 de junho de 2019

TROCA DE POLTRONA

Eu fazia a viagem BH-São Paulo. Desceria em Pouso Alegre. A minha poltrona era de corredor, mais para o começo do ônibus. Na poltrona vizinha, porém do outro lado do corredor, na janela uma moça linda num vestido floral; mas quando digo linda, era linda mesmo. Chegou um rapaz, daquele jeito, olhando o número de poltrona. Fez cara de que achou. Enfiou a mochila no bagageiro logo acima. Pediu licença à moça. Assentou-se do lado dela, na poltrona do corredor. Começou a mexer num iphone enorme.

Deus que me perdoe as más primeiras impressões, mas ele tinha jeito daqueles que gostam de contar vantagem. Até duvidei que ali fosse mesmo a poltrona dele. Mas, vamos lá. A menina, muito educada, lia o livro Cidades de Papel. A frente dos dois havia um gordão. Daqueles que ocupam uma poltrona e meia. Não estou querendo esculachar não, mas era a verdade.

Logo chegou outra moça. Bonita também e toda de branco. Assentou-se com o gordo. Quando ainda se ajeitava olhou para trás e reconheceu a amiga que não via a tempo, a menina de vestido floral. Começaram a conversar. Logo a menina de branco pediu o rapaz do iphone: você não troca de lugar comigo, para eu ir com minha amiga? Ele, abrindo as aletas do nariz como cheirasse imundície, disse: não, não. Não posso. Temos que ficar na poltrona conforme consta na passagem. Em caso de acidente, pensa bem. As passagens interestaduais têm número e nome da gente. Eu pensei: e ele é besta de deixar a gatinha do vestido floral para ficar com o gordão?

Nisso, o gordão, muito gente boa, falou com a gatinha de vestido floral mal se virando, porque não conseguia. Pode deixar. Eu troco com você. O rapaz do iphone quis morrer. O gordão foi para o lado dele e ainda pegou janela. Eu até cobri cabeça com a blusa para rir. Não deu cinco minutos e o gordão já dormia. Um braço praticamente em cima do vizinho. O rapaz não suportou. Pegou sua mochilinha e sumiu para os fundos do ônibus. Esqueceu-se rapidinho daquilo de que não podia mudar de poltrona nas viagens interestaduais.

terça-feira, 4 de junho de 2019

Antes

antes, quando vivíamos
longe do asfalto
nossa terra era mais nossa
nossas histórias mais nossas
havia um mundo mais nosso
depois, chegou muito do que já sobra por aí
o que nos tornou meio qualquer um
vivíamos aquela alegria boba
alegria das coisinhas de cada dia
isso nos unia
punha distância ao "cada um por si"

aí aquele senhor dirá esse trouxa
está dizendo que asfalto é ruim?
eu digo não. Estou falando de outra coisa
mas estou sem saco para explicar

domingo, 2 de junho de 2019

MOTIVOS


Eu ia pela rua Pouso Alegre, na altura do 2016. Numa lixeira, daquelas suspensas na calçada, vi uma caixa aberta, cheia de livros. Uns vinte, que eu podia apostar jamais foram lidos, embora fossem publicações já de vários anos. Pela condição deles, comecei a folheá-los. Logo chegou um catador. Pediu-me licença, para olhar o lixo também. Eu disse tudo bem. Gostei do jeito respeitoso dele.

O que você busca? Eu quis saber. Ele disse latinhas, plástico, papel. Meu nome é reciclagem, ele completou, sorrindo. Eu estou olhando livros, eu disse. Ah... ele disse sem entusiasmo. E você, gosta de ler? Eu perguntei. Ele disse: gosto é das figuras. Disse com má vontade. E de ler? eu insisti. Como falasse de uma comida que não aprecia, ele disse: não muito. A minha cabeça é meio avoada. Gira muito. Para ler precisa de ter cabeça quieta. “Cabeça quieta”, repeti mentalmente. Sorri. E você gostava de estudar? Eu quis saber. Ele respondeu: gostava não. Meus pais eram muito bravos. Queriam me forçar a estudar. Foi briga a vida inteira. Com 15 anos, fugi de casa. Isso já faz 15. Saí do Espírito Santo. Moro na rua. Nunca mais voltei. Fugi deles. Achei triste a história do rapaz. Resolvi não insistir. Quer uma sacola limpa para os seus livros? Disse o rapaz, uma voz de boa gente. Sim, eu disse. Ele arrumou, com boa vontade. Mas você sabe ler, né? eu quis saber, numa derradeira cartada. Sim, ele disse. Deixei um livro com ele. A Arte da Guerra. Tenta ler o livro, eu disse. Ele sorriu. E vê se volta para casa, nem que apenas para uma visita rápida ao seu povo, completei. Está mais fácil eu ler o livro, ele disse, sorrindo.

Segui minha caminhada, pensativo. Na Contorno com a Hermílio Alves há um rapaz que, praticamente mora ali. Menos de 30 anos. Pediu-me dinheiro. Eu estava sem. Disse que não tinha nada comigo. Eu já partia quando ocorreu-me algo. Virei-me para ele e perguntei o que achava dos livro. Ele disse: livros? adoro ler. Eu tenho um bocado aqui. Quer? Eu disse, mostrando a sacola. Os olhos dele brilharam. Lógico, ele disse. Falei pegue quantos quiser. Até todos, caso queira. Ele se assentou. Começou a olhar, escolher, folhear. Escolheu quase todos. Deixou apenas três, disse que estava com dó de mim. Eu disse que os livros eram para doação mesmo. Ele falou então você me doa todos e eu te presenteio com esses três. É presente. Eu sorri. Assim, sim, eu disse. Por que está na rua? Eu perguntei. Ele disse, meu pai morreu. Eu era pequeno. Logo também morreu a minha mãe. Fiquei só, com uns tios chatos. Fugi, não faço falta para eles.

Contei a história toda para uns amigos. O Melquisedec disse que até o "povo de rua" do meu bairro é chique. Eu sorri. Ele completou dizendo que “esse pessoal” tem muita história, a gente é que não houve. O Salgado disse: verdade, mas temos nossos motivos.

Motivos, motivos. O que não nos falta são motivos, seja para o que for. Uns não gostam de livros e fogem para fugir dos pais. Outros gostam de livros e fogem porque perdeu os pais. Motivos diferentes, mas a mesma vida de rua. Às vezes nos falta protagonismo. Motivos não faltam. Se a gente não reage. Não se impõe. Não busca favorecer a própria sorte. É jogado feito barquinho à deriva, pela vida, que nisso está metendo o ferrão na costela da gente, para que reajamos, mas a gente não reage.

Post scriptum:

Esses dois moradores de rua, encontrei numa das rotas que faço caminhada. Uma semana depois, caminhando no mesmo horário e itinerário, encontrei o tal que não gosta de ler e fugiu dos pais. Olá. E o livro? Perguntei. Ah, é você. Ele disse. Acreditada que estou lendo? Ele disse. No rosto, o mesmo riso bondoso do outro dia. Acredito, ué. Fico é feliz, eu disse. Acho que vai ser o primeiro que acabo, completou, parecendo orgulhoso. Orgulhoso também fiquei, segui meu rumo. Fiquei curioso quanto ao outro morador de rua. O que gosta de ler e fugiu por perder os pais, com endereço quase certo na Contorno com Hermílio Alves. Uns passos mais e, lá estava ele. Olá. E os livros? Eu disse festivamente. Ah, ele resmungou. Pareceu me reconhecer imediatamente. Estão ali. Guardadinhos, completou. Lendo algum? Eu quis saber. Ainda não. Estou sem tempo. Ele disse, um risinho amarelo de U no rosto. Também sorri. Eh, vida louca. O que não gosta de ler, estava lendo. O que gosta; estava sem tempo. Só rindo mesmo. Cada vez entendo menos.