Eu gostava da casa
cor-de-rosa, uma casa tão diferente. Tinha a frente para o fundo e o fundo para
frente. O jardim crescia assim também, atrapalhado, ao inverso das gentes. Sem
ser plantada lá abrolhou uma florzinha azul. A madrinha disse que foi obra de
algum anjo, durante a noite. Eu gostei de pensar em anjos ali durante a noite,
guardando a casa como cães silenciosos. Teriam deixado a florzinha em sinal.
Depois de mais crescidinho cuidei que fosse a florzinha caso de semente viajada
em pé de passarinho, que veio bicar o chão fresco das outras flores. Então a
florzinha azul, de algum jeito, vinha na conta da ação de quem plantou as
demais flores: mamãe e papai. Flores atraem flores. A esquerda arvorava-se a
conteira. Sempre se enfeitava dependurada de canarinhos-ouro e continhas de
brincos de orelha de moça. Do alpendre eu via um tudo. Um alpendre no oposto da
estrada das gentes. Dali eu desvendava o Alto da Paz
e aquela montanha como uma pirâmide azul no fim do mundo. Por ali só um alguém
aparecia, de vez em vez. Um andarilho de nome Luizico. Isso por ser atrapalhado
e então pensar invertido. Em são juízo ninguém atinaria aproximar-se da casa por
aquele prumo. Eu gostava da corruíra, sempre quieta, bicando sozinha, pelas
sombras. Desprovida de belo canto, de belo porte, de bela penagem. Que saudade
sinto da casa cor-de-rosa. A volta com aqueles
coisinhas, eu era galo, passarinho, minhoca, árvore e até pedra. Ali era ninho
com capacidade de me nascer outras coisas. A paineira velha rangia à mínima
brisa. Eu achava que aquilo era fala dela. Uma fala dolorida. E eu a entendia.
Não na língua falada em palavras; mas na língua falada dos sentimentos. Para
acalmá-la, às vezes eu ia lá, à beira do seu abismo. Abraçava-a. Com cuidado,
lógico, para não me machucar nos seus espinhinhos de mamica de porca. Eu só
lembrava das gentes quando o oco na barriga era cutucado pelo cheiro de bolo de
fubá, café fresco, feijão refogado. O mundo das gentes tem muito barulho e é
muito complicado. A língua das palavras faladas é complicada de
mal-entendimentos. Sinto saudade daquela casa cor-de-rosa com portas e janelas
de tábuas que me selavam dos enquadres das trevas. Saudade do alpendre
invertido das gentes. Se bem que, hoje, isso tudo de nada me valeria. Uma vez
descriançado, a gente só sabe ser gente, e isso é bem chato.