sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Limitado

 Meu filho me perguntou o que
Eu tinha para falar do Dieguito
Sobre os prós e contra, sabe
Estendo a todos o que respondi
Acho lindo o humano capaz de focar
na emoção, na genialidade do próximo
Daí todo resto vem
com compaixão, vem menor.
Quem foca no defeito é limitado
Olha uma tela de Gauguin e não vê
como Deus lhe falou ali
Cega-lhe maior à mente julgadora
a ciência da vida boêmia
e promíscua do pintor


segunda-feira, 23 de novembro de 2020

1979

 no riachinho tainhas nuas 
sobem na flor d'água 
para ver a tarde
na curva da estrada 
o cachorro amarelo
corre atrás das sombras 
dos pássaros em voo
o gato gordo olha o mundo
derretido de preguiça
o vento faz cócegas 
nas laranjeiras que 
tremem folhas de rir
a paisagem parece 
desbotada qual foto antiga
o berro das vacas parece triste 
o pio do gaviãozinho também
o menino olha para o céu 
derramado de nuvens amarelas
pensa amanhã neste horário 
já serei morador de cidade
será o céu de lá tão bonito
com um canivetinho ele risca
no tronco laranjeira: 1979

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

casa diferente

 

Eu gostava da casa cor-de-rosa, uma casa tão diferente. Tinha a frente para o fundo e o fundo para frente. O jardim crescia assim também, atrapalhado, ao inverso das gentes. Sem ser plantada lá abrolhou uma florzinha azul. A madrinha disse que foi obra de algum anjo, durante a noite. Eu gostei de pensar em anjos ali durante a noite, guardando a casa como cães silenciosos. Teriam deixado a florzinha em sinal. Depois de mais crescidinho cuidei que fosse a florzinha caso de semente viajada em pé de passarinho, que veio bicar o chão fresco das outras flores. Então a florzinha azul, de algum jeito, vinha na conta da ação de quem plantou as demais flores: mamãe e papai. Flores atraem flores. A esquerda arvorava-se a conteira. Sempre se enfeitava dependurada de canarinhos-ouro e continhas de brincos de orelha de moça. Do alpendre eu via um tudo. Um alpendre no oposto da estrada das gentes. Dali eu desvendava o Alto da Paz e aquela montanha como uma pirâmide azul no fim do mundo. Por ali só um alguém aparecia, de vez em vez. Um andarilho de nome Luizico. Isso por ser atrapalhado e então pensar invertido. Em são juízo ninguém atinaria aproximar-se da casa por aquele prumo. Eu gostava da corruíra, sempre quieta, bicando sozinha, pelas sombras. Desprovida de belo canto, de belo porte, de bela penagem. Que saudade sinto da casa cor-de-rosa. A volta com aqueles coisinhas, eu era galo, passarinho, minhoca, árvore e até pedra. Ali era ninho com capacidade de me nascer outras coisas. A paineira velha rangia à mínima brisa. Eu achava que aquilo era fala dela. Uma fala dolorida. E eu a entendia. Não na língua falada em palavras; mas na língua falada dos sentimentos. Para acalmá-la, às vezes eu ia lá, à beira do seu abismo. Abraçava-a. Com cuidado, lógico, para não me machucar nos seus espinhinhos de mamica de porca. Eu só lembrava das gentes quando o oco na barriga era cutucado pelo cheiro de bolo de fubá, café fresco, feijão refogado. O mundo das gentes tem muito barulho e é muito complicado. A língua das palavras faladas é complicada de mal-entendimentos. Sinto saudade daquela casa cor-de-rosa com portas e janelas de tábuas que me selavam dos enquadres das trevas. Saudade do alpendre invertido das gentes. Se bem que, hoje, isso tudo de nada me valeria. Uma vez descriançado, a gente só sabe ser gente, e isso é bem chato.