quarta-feira, 30 de março de 2016

Ô Diacho


Ele disse “acho”
“Acho” que é isso mesmo
Acho, acho...
Ô diacho
Quem põe o “acho”
Atrás do dito
Lhe tira o crédito
Parece sem certeza
“Acho que é isso”
Não tem a força
De “é isso”
Acho, acho...
Ô diacho




sexta-feira, 25 de março de 2016

Carpe diem



O dia era quente
E abafado

O céu foi
Tomado por
Nuvens

Mas à noitinha
Veio um vento
Avacalhado

Assoprou
Tudo

Não caiu um
Pinguinho sequer

Eu sobrei
Arrastando um
Guarda-chuvão
Feio debaixo
Do braço

Pela quermesse
Feito bobo

É isso que
Dá viver
Tentando
Antecipar
Tudo

Deveria usar o
Guarda-chuva
Como vaso de flores

Caso viesse chuva
Que me molhasse
Afinal não sou
De açúcar


quinta-feira, 24 de março de 2016

Cá e lá



Se sou de cá
Não sou de lá
Se sou de lá
Não sou de cá
Agora
Se saio de lá
E venho para cá
Ou saio de cá
E vou para lá
Então já
Não sou
Nem de cá
Nem de lá

quarta-feira, 16 de março de 2016

Tênis Velho



Lembro da primeira vez que o vi. Estava lá, no canto menos iluminado da vitrine. Era manhã. Falei com a mocinha. Me deixe experimentar aquele. Indiquei com o dedo. Ela pegou um. E esse? Disse arregalando os olhos. Nããão, eu disse. Acho que ela não gostou do meu “não” comprido. É o do fundo, com as três faixinhas. Procurei observar com a voz mais educada que pude. Ah, gemeu ela. Com ele nas mãos achei-o meio sem-graça, mas experimentei assim mesmo. Por coincidência era 39, meu número. Maciez perfeita. Andei em círculo, meio mancando. Vestiu bem meus pés. Gostou? Disse a mocinha com voz de ressaca. Vou levar, eu disse incisivo. A mocinha parece até se assustou, apenas então acordando. Nossa, rodei tanto com ele. Esteve comigo nos montes mais altos de Monte Verde, passeou muito em Guarapari, nas Serras Gaúchas, Guarujá e Ubatuba. Enfim, tantos lugares e tantas horas de caminhada, principalmente em Botelhos, Consolação e BH. Quando caí na roça do meu pai, machucando um pé, eu não estava com ele. Mas ele esteve comigo, firme, na maioria das sessões de fisioterapia. Agora ele está velho. Levei-o a Reformadora de Tênis. A moça lá, torcendo o nariz, disse que não vale a pena, que é melhor descartar. Disse sem nem olhar direito e sem tirar o dedinho indicador da tela do celular. Bah... Descartar. Isso até me dá arrepio, essa cultura do descarte. Acho que no-fundo-no-fundo o desconforto maior meu vem do receio de que chegue o dia em que o descartado seja eu. Acho que vou encher o tênis de terra e plantar um pé de rosinha. Aí deixo na roça, para que ele curta bem sua velhice. Risos. Quando estiver bem florido ficará interessante. Farei uma foto bem artística e é capaz até que a moça da Reformadora de tênis use a foto como papel de parede de seu celular.   

domingo, 13 de março de 2016

Despercebido


Eu ia próximo à curva da Paraisópolis com a Oligisto, aqui em BH mesmo, no bairro Santa Tereza, e notei um senhor numa garagem, cheio de cuidados com uma gaiola com um pássaro dentro. Olhei de longe por entre as grades, diminuindo a caminhada, mas sem parar totalmente. Manobrando a cabeça para lá e para cá, sabe. Contudo não consegui ver bem. Que pássaro o senhor tem aí, seu Luiz? Uma senhora que passava, decerto vizinha, deu voz a minha curiosidade. Eu disfarcei e parei. Até me assustei com ela falando tão ao meu lado. Não notei sua aproximação. É um pardal, ele respondeu. Pardal! Admirou-se ela, ajeitando o xale preto. Sim, disse ele, boca sem dentes, rostinho magro e enrugado do jeito máximo que se possa imaginar. Sabe o que foi, ele seguiu. A voz mansa parecia de alguém mais jovem. É que esse coitadinho apareceu aqui no quintal com uma asinha machucada. Só tô cuidando dele até ficar bom. Depois solto. Ah, admirou-se outra vez a vizinha, entediada. Aproximou-se do portão. Abriu-o com agilidade. Espichou a cabeça erguendo os óculos para ver melhor o pássaro. Nossa, a asinha tá bem machucada mesmo, observou. Fez cara de dor. Se depender de mim, sara. Disse o velho sorrindo. A boca era sem dentes, o rosto enrugado a não poder mais; mas o riso era esplêndido, cândido, de anjo. Coisas assim passam despercebidas da gente, mas do roubo na Alvinópolis ninguém para de falar. Só a menina do 201 já me contou três vezes, e em detalhes.