sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

sonho de hoje

Sonhei com a antiga Praça de Consolação
Aquela com árvores redondinhas e coreto
Dos anos 60 e 70, com a casa de vovô à lateral
Muitos conversavam, na tarde iluminada
O tio Lauro, de braços dados com a tia Aparecida
Conversava festivamente com o Afonso Teófilo
O tio Lauro abanou uma mão para mim
Depois, com aquele jeito risonho dele, brincalhão
Perguntou-me se ainda tenho medo de onça
Eu, também risonho, não respondi. Apenas corri
O Afonso e a tia sorriram do meu jeito
Respondo agora, tio. Sim, tenho medo
Embora as onças hoje sejam outras
Mas fico feliz que o senhor, que vocês todos
Dessa praça, até mesmo essa praça
Ainda habitem em mim

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

VIVA

a casa
a Tereza
o Major

casa já
antiga
em 1915

o Major
reformou-a
casou-se

não é
casa
comum

não é
qualquer
Tereza

ela mostra
foto dela
aos 30

linda
linda
linda

na casa
tem até
paredes de
pau-a-pique

pau-a-pique
mais forte
que tijolos

tem a
biblioteca
do Major

tem os
cheiros

o café
os bolos
da Tereza

tem os
barulhos
na madeira

range
assoalhos
forros
Janelas

bate uma
panela

tudo
é muito
antigo

cicatrizes
nas paredes
nos portais

até os
barulhos
são antigos

mas as
histórias
a Tereza
conta agora

salas enormes
mobília
intocada

o primeiro
relógio a
bater horas
na cidade

relógio
de cento e
tantos e
anos

o povo
vinha
ver

coisas
do tempo
da farmácia

a Tereza
conta, conta
fala do Major

fez tanta coisa
não se conforma
que ele morreu
aos 59

o Major
está vivo
na fala
da Tereza

a Tereza
vive bem
aos 92

o casarão
a mantém

não há
tristeza
pra Tereza

brilham
os pisos
antigos

brilham
os olhos
da Tereza

a Tereza
dá voz
ao casarão

por fora
o casarão
é bonito

por dentro
é um mundo

o Major
sorri
na foto

viva o
casarão
viva
o Major

viva
a Tereza

domingo, 19 de janeiro de 2020

Pânico no Jardim


As flores estão inquietas. Saúvas no jardim! Na primeira noite e a devassa já foi grande. Margaridas tagarelam com as rosas. As rosas estão desesperadas. Foram as mais atacadas. Cadê o jardineiro! Cadê o janeiro! É o que se ouve. Saúvas más, más, muito más. Gritam as comigo-ninguém-pode. É receio geral que o jardineiro desista do jardim, que já vinha com ervas daninhas aqui e ali. As formigas estão felizes. Entendem que enfim encontraram um bom lugar. Abundante em plantas do agrado delas, e abandonado. Amam as flores. Amam as pétalas e até as folhas e caules. Com elas cultivam suas roças de fungos, que lhes servem de alimentos. Seus filhos poderão crescer saudáveis. Mau é o tatu, pensam... O jardineiro irrita-se com as formigas. Dão-lhe muito trabalho. Aprecia que as pessoas vejam seu jardim florido, cuidado. Não quer se passar por descuidado, preguiçoso. Mas as formigas lhe põem redemunhado. Como controlá-las. O veneno pode também matar as flores. No fundo, no fundo sabe que a terra também é das formigas. Mas, poxa, elas fazem passá-lo por homem que não cuida das suas coisas. As flores sou eu; as formigas e até o tatu também sou eu. O jardineiro, igualmente, sou eu. Que eu faça meu trabalho com sabedoria.


sábado, 4 de janeiro de 2020

Desnorteio

Na manhã luminosa, quente, não chego a tempo de ver os filhotes de sabiá-laranjeira no ninho. Falo daquele velho ninho, sobre a curva branca do condutor de calha. Voaram tem uns poucos dias, diz o Antônio Augusto. Mas fico feliz por ver a velha gaiola livre dos canários-belgas. Sem o fundo, agora ela apenas protege um pé de tomatinhos selvagens, no gramado próximo da piscina. Gramado onde o menino Henrique, feliz da vida, faz xixi livre das fraudas pela primeira vez. Ele sorri, sorri. Faz xixi outra vez. Não se conforma. Corre quando fazem chuva de mangueira no telhado da área da churrasqueira. Além de refrescar, a chuva de mentirinha alastra um cheiro bom de viço, de tuia. Os pingos dourados divertem ainda mais o menino Henrique, que deslumbrado, chama o irmão Miguel. Os meninos correm, correm, sorriem.


Os adultos também sorriem, sorriem. Brincam com a Terezinha. Dizem que ela não para de comer. O Hélcio e o Rovilson apertam-na dos lados. Todos assentados num banco. Fazem como naquela brincadeira de meninos, que chamam de “fazer a gata parir”. Ela finge desespero, sorri, sorri. Bate duas mangas siamesas na cabeça do Rovilson. Grita Paulo, Paulo. Socorro. Bate a manga na chita da toalha de mesa. O Paulo finge desagrado. Faz um chiste com a boca. Não me faz vergonha não, mulher. E a coisa vai numa explosão de alegria. Alguns dos presentes usam camisa com os dizeres: "família. Onde a vida começa e o amor nunca termina". Família é mesmo amor, é verdade. Mas também é humor. 

Um povo no sol, um sol de queimar; o guarda-sol na sombra. Coisa de desorientados. A Cida Gonçalves olha as crianças na piscina, quem sabe desejosa de estar com elas. A piscina parece uma bolha capaz de levar a outra dimensão. Camila, Rosana, Vera, Géia, Raquel, sorriem, falam, falam, sorriem. Fazem barulho. A Dri nem preciso dizer, sobre fazer barulho. Ainda mais quando faz girar o guarda-sol com a Marta. As lonas azuis do guarda-sol giram, giram, como saia rodada numa dança de rodas. Elas batem as mãos livres na mesa, como jogassem truco. Um casal de sabiás-laranjeira pousa no telhado, próximo ao pé de primavera (acho), para ver o que acontece. E realmente algo estranho acontece ali... Ainda comento com o Otávio. Quase sessenta pessoas, entre novinhos e madurinhos. Nin-guém-nin-guém consulta o celular. Parece coisa combinada, do tipo, celular hoje está proibido. Nada foi combinado. É ação da força ancestral que se agiganta quando se ajuntam muitos dos escolhidos para representá-la no plano-físico-presente. Uma luz que imanta, encanta, orienta (e também desorienta. Risos. Quando o Paulo diz a Terezinha. Ô mulher, já não está na hora de você me chamar para irmos embora? Que isso! Acabamos de chegar, ela responde, mastigando um pedaço de queijo com mel. Parece verdadeiramente confusa com a passagem do tempo).

A vivacidade do sopro ancestral parece fazer as Tias Dete e Ruth sentirem-se exageradamente cheias de algo; a tia Neuza chega a perder o fôlego; balões amarelos dependurados estouram em pipocos que assustam e divertem; o menino Henrique é impelido a crescer, a deixar a frauda. Quando a família se ajunta, em espírito, já não há mais cada um. É um todo que se regozija na prazerosa sensação de peça de quebra-cabeça. Quem aproveitava da lichia, nem parece ser os vivos, mas a força antiga que se vale deles para relembrar o doce das frutas. Miguel e Henrique abraçam-se. Abraço de irmãos. Conexão de sangue e luz. O pai olha-os com ternura. A mãe, nem se fale. A bandeira mostra o Santo Antônio, no canto do gramado, a arregalar a época da próxima abertura do canal, nas Festas Juninas. Este Caconde tem algo... A casa cor de terra, na Rua São Roque, ninho da Sabinada, ninho de sabiás, desnorteia. Desnorteia com força curativa. Desnorteia para depois nortear outra vez, de um jeito melhor, mais doce.