sábado, 4 de janeiro de 2020

Desnorteio

Na manhã luminosa, quente, não chego a tempo de ver os filhotes de sabiá-laranjeira no ninho. Falo daquele velho ninho, sobre a curva branca do condutor de calha. Voaram tem uns poucos dias, diz o Antônio Augusto. Mas fico feliz por ver a velha gaiola livre dos canários-belgas. Sem o fundo, agora ela apenas protege um pé de tomatinhos selvagens, no gramado próximo da piscina. Gramado onde o menino Henrique, feliz da vida, faz xixi livre das fraudas pela primeira vez. Ele sorri, sorri. Faz xixi outra vez. Não se conforma. Corre quando fazem chuva de mangueira no telhado da área da churrasqueira. Além de refrescar, a chuva de mentirinha alastra um cheiro bom de viço, de tuia. Os pingos dourados divertem ainda mais o menino Henrique, que deslumbrado, chama o irmão Miguel. Os meninos correm, correm, sorriem.


Os adultos também sorriem, sorriem. Brincam com a Terezinha. Dizem que ela não para de comer. O Hélcio e o Rovilson apertam-na dos lados. Todos assentados num banco. Fazem como naquela brincadeira de meninos, que chamam de “fazer a gata parir”. Ela finge desespero, sorri, sorri. Bate duas mangas siamesas na cabeça do Rovilson. Grita Paulo, Paulo. Socorro. Bate a manga na chita da toalha de mesa. O Paulo finge desagrado. Faz um chiste com a boca. Não me faz vergonha não, mulher. E a coisa vai numa explosão de alegria. Alguns dos presentes usam camisa com os dizeres: "família. Onde a vida começa e o amor nunca termina". Família é mesmo amor, é verdade. Mas também é humor. 

Um povo no sol, um sol de queimar; o guarda-sol na sombra. Coisa de desorientados. A Cida Gonçalves olha as crianças na piscina, quem sabe desejosa de estar com elas. A piscina parece uma bolha capaz de levar a outra dimensão. Camila, Rosana, Vera, Géia, Raquel, sorriem, falam, falam, sorriem. Fazem barulho. A Dri nem preciso dizer, sobre fazer barulho. Ainda mais quando faz girar o guarda-sol com a Marta. As lonas azuis do guarda-sol giram, giram, como saia rodada numa dança de rodas. Elas batem as mãos livres na mesa, como jogassem truco. Um casal de sabiás-laranjeira pousa no telhado, próximo ao pé de primavera (acho), para ver o que acontece. E realmente algo estranho acontece ali... Ainda comento com o Otávio. Quase sessenta pessoas, entre novinhos e madurinhos. Nin-guém-nin-guém consulta o celular. Parece coisa combinada, do tipo, celular hoje está proibido. Nada foi combinado. É ação da força ancestral que se agiganta quando se ajuntam muitos dos escolhidos para representá-la no plano-físico-presente. Uma luz que imanta, encanta, orienta (e também desorienta. Risos. Quando o Paulo diz a Terezinha. Ô mulher, já não está na hora de você me chamar para irmos embora? Que isso! Acabamos de chegar, ela responde, mastigando um pedaço de queijo com mel. Parece verdadeiramente confusa com a passagem do tempo).

A vivacidade do sopro ancestral parece fazer as Tias Dete e Ruth sentirem-se exageradamente cheias de algo; a tia Neuza chega a perder o fôlego; balões amarelos dependurados estouram em pipocos que assustam e divertem; o menino Henrique é impelido a crescer, a deixar a frauda. Quando a família se ajunta, em espírito, já não há mais cada um. É um todo que se regozija na prazerosa sensação de peça de quebra-cabeça. Quem aproveitava da lichia, nem parece ser os vivos, mas a força antiga que se vale deles para relembrar o doce das frutas. Miguel e Henrique abraçam-se. Abraço de irmãos. Conexão de sangue e luz. O pai olha-os com ternura. A mãe, nem se fale. A bandeira mostra o Santo Antônio, no canto do gramado, a arregalar a época da próxima abertura do canal, nas Festas Juninas. Este Caconde tem algo... A casa cor de terra, na Rua São Roque, ninho da Sabinada, ninho de sabiás, desnorteia. Desnorteia com força curativa. Desnorteia para depois nortear outra vez, de um jeito melhor, mais doce. 

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