quarta-feira, 14 de outubro de 2020

facilitude

na nossa mente conforma-se um extraordinário
sensações, sons, filmes, fumaças e pessoas
sim, sim, tantas são as pessoas
todas que conhecemos, ali, duplicadas
onde não morrem, apenas se desvanecem
sumir de todo a de ser raridade
conversamos uma vez com alguém e zás
uma cópia dela salta nesse nosso gasoso
como a Janete (a Jane), a prima paraguaia
uma cópia dela mergulhou em mim
do jeito que desenho que ela seja  
sempre olho para ela com vontade de colori-la mais
mas com o tempo trocando-me suas telas
outras coisas reclamando-me o olhar
sigo sem saber mais da prima do Py
que me intriga porque penso que o
olhar dela seja triste
isso me desregula
queria saber mais desse olhar
meu avô falava que tenho facilitude
para crescer exageros na cachola
e pensando com meus passarinhos
concordo. mas é caso fora de controle
se está crescido, pronto, existe-me
acho que dentro da gente tem
um mundo maior do que o outro
quem sabe a prima paraguaia queira me contar
que a tristeza que vejo não é dela
e que não há motivo algum para tristezas
nem da parte dela e nem da minha

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Risadões

Por aquele tempo em que eu morava em Cambuí, estive algumas vezes de férias na casa da minha tia Zilda, na Estiva. Seria entre 1978 e 1981. Era uma alegria. A casa tão cheia de flores. Flores por dentro e ao redor. Flores até nas blusas da tia. Muita comida boa, falatório alto e vivo, risadões. Ele me disse que mamãe “era como era” porque em criança ferveram um favinho de mel de marimbondo para tratar de uma asma dele. E que não viram; mas ao desvelo dos adultos, mamãe engoliu um marimbondo, que desde então mora na cabeça dela. Que quando ele cutuca, minha mãe marimbondeia (ou seja, sobra exageradamente brava com qualquer coisinha). Ela Sorria, eu sorria. Com os risadões dela congelados em minha mente eu ia para o pomar, envolvido com laranjas, passarinhos e caramujos. A tia me chamava quase de hora em hora. Queria que eu comesse. Eu agradecia, dizia-me satisfeito. Ele falava que criança não pode passar fome. Aliás, que ninguém pode passar fome, completava. Eu sorria, ela sorria. Eu voltava para o pomar dos caramujos. Ela perguntava o que eu tanto fazia lá. Como que eu ia explicar para ela que o pomar, tão afeito a terra, era-me mágico, com capacidade de abrir-me para outra dimensão. Eu apenas dizia: nada não, tia. Ontem mamãe ligou-me, emocionada. Disse que a tia partiu. Senti-me cortado de uma secura fria. O corpo da tia vai-se para o reino da terra, mas o perfume dela não. Será para onde ela vai haverá comida da boa? Ou será um muito melhor? Risadões certamente haverá. (Os risadões dela ecoam-me até hoje, misturados a uma lembrança de cheiro de terra fresca). A tia merece tudo que vier da luz. Merece uma dimensão muito, muito mais agradável do que é para uma criança um pomar sombreado repleno de laranjas, pintassilgos e caramujos.


sábado, 3 de outubro de 2020

PALAVRAS

I
Confesso minha
dificuldade com as palavras
até que tento me externar
por meio deles pois
é o que resta
 
mas meu sentimento é
espécie de bando de
canarinhos revoando
daquele jeito embolado sabe
como uma dança no ar
 
elaborar uma frase é para mim
como por esses passarinhos em fila
que graça tem quão limitante é
é quando a comunicação é pelo fala
então minha dificuldade é maior
 
reconheço na minha
incompetência
algo de preguiça
saber do que sinto pelo que digo
e como olhar o carnaval
pelo buraco da fechadura
limitante por mais
que me esforce
 
mas não desisto de tudo
senão passo por vazio
assim do sentimento inquieto
que enxameia abundante
externo gotas para você 
 
II
 
em cada palavra
há um mundo
um mundo que vai
se revelando
apenas para
quem está disposto
a chegar pertinho
 
de longe muitas
são parecidas
mas é engano
o ancião que
há em cada
uma delas
está disposto
a explicá-la
direitinho

mas apenas para
quem estiver disposto 
a achar um bocado
de tempo achegado
junto dele
 
III
 
as palavras geralmente
são bichos ariscos
escondem-se principalmente
de quem não tem 
paciência com elas
 
é quase impossível
recordar-se de palavras
como idiossincrasia
apanágio consentâneo
claudicar deletério
extemporâneo corolário
tergiversar augúrio
 
aí temos que nos
valer das lhe vem
palavras sem-vergonhinhas
como coisa, negócio, trem
 
IV
 
hoje li no livro 
Infância inventada
de Manoel de Barros 
algo que me fez bem
entendi a dificuldade
com  palavras como 
requisito para poesia
quem é bom de fala
parece ter certa ligação direta
entre a caixinha de pensar
e a maquininha de falar
então falam falam
outros (os poetas) pensam
e até que a coisa lhe saia pela
boca passa por um vale de
curvas sensações e imagens
falar significaria organizar
esse caos maravilhoso
em palavras e frases
não é fácil mas 
o resultado é diferente