domingo, 14 de fevereiro de 2021

O QUINTAL DA TIA

 

A tia poderia olhar a rua
Conversar com transeuntes
Mas não
Ficava na varanda para o quintal
Um jeito distante um olhar parado
A montanha redonda ao fundo
Era coberta de árvores e puro viço
As quaresmeiras estouravam-se em flores
E a passarada cantava em grande alarido
Essa era a vista do quintal da tia
Mas ela parecia não ver
Tão preocupada com as daninhas
Dominando tudo segundo ela
Falava que era uma vergonha
Uma grande vergonha
Um quintal sujo daqueles
Que ia falar com os filhos
Isso enquanto tomávamos café
Coitada da tia logo ficou doente
Doente da mente perdeu o juízo
Um ano depois e já não me reconheceria
Parece que a doença
Chega primeiro aos olhos
da gente

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Carta ao Jayme

Prezado Jayme. Como vai? E a família? Os meninos... a Raquel... Já 2021, hein! Esquisito. Cá vamos espremidos em dias lentos que demoram avançar; mas que depois que vão, deixam pouco. Quase como não houvessem existido. 2020 parece que mal começou. Tudo porque corre uma besta lá fora, primo, e os urubus rondam, rondam. Andamos tão necessitados de encontros presenciais, de aglomeração; mas nem careço dizer que por ora são inoportunos. Foi mesmo uma pena não acontecer a reunião anual de "di'diano" da Sabinada, agora no início de 2021. Quando nos reunimos no dia inaugural de 2020, quem diria que em 2021 seria diferente? A vida é mesmo assim, preciosa. Devemos valorar cada momento. Certo dia fazemos algo pela derradeira vez sem nos darmos conta. Sei que foi uma tristeza para cada Sabino ficar em sua casa, desvestido dos abraços, desenfeitado dos beijos, privado dos risos e goles que amiúde acontecem no explosivo encontro na casa da vó Eugélia. Desta vez não precisamos desenhar cruzes de sangue nos nossos portais, como daquela vez no Egito. Apenas permanecer em casa. E agradecidos. Triste mesmo, para quem ficou pelo caminho, para os familiares. Tem também a tristeza das pessoas se desentendendo. Esses momentos de medo revelam o obscuro em nós. Nas redes sociais, as pessoas gritam, gritam. Gritam para si mesmas. Sem espaço para o debate, para a escuta. Nossas ações tem um oculto que quer se esconder. Expectativas infantis que transmigram uma coisa em outra. Quero dizer que atrás de um ódio, de uma raiva, pode ver, há sempre um oculto que quer se disfarçar. Como diz uma amiga, todo exagero esconde uma falta. Uns criticam quem não sai de máscara. Outros criticam quem sai da máscara. Uns parecem gostar do caos. Que juízo! Outros parecem negar. Que doentio! E lá fora a besta corre e os urubus rondam. Quando eu era criança, eu era o mais novo de muitos primos. Eu vivia num sítio. Eles viviam as mais incríveis aventuras. Por ser menor, minha mãe vetava que eu os acompanhasse. Dizia que eu tinha que crescer primeiro. Era um tédio. Assim eu vivia a espera, na varanda, olhar perdido, notando as montanhas mais distantes, esperando o tempo passar. Agora revisito esse fastio, de espera até não sei quando. Mas os ventos hão de mudar, primo Jayme. Sempre mudam. Esperamos que a alegria volte. Agora é madrugada. Cantam os sabiás. Alaranja-se o horizonte. Já sinto o cheiro do novo dia. A besta aí fora passará, porque tudo passa. Esperamos que em 22 a Sabinada volte a se encontrar lá na Rua São Roque, perto da caixa d'água, com a volta do poder anestesiante dos abraços. Por enquanto, a nossa esperança vai numa agulhada. O meu abraço.