sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

E à-toa


Algo prazeroso era-me jogar futebol. Mas nisso havia-me uma incomoda dor. E não falo de contusões ou coisas assim. O futebol eu adorava de qualquer jeito, mas bem sabia que minha habilidade física não acompanha as minhas criações mentais.

Era assim. Os dois melhores tiravam “par ou impar”. Eram os capitães. O vencedor escolhia quem achava melhor, seu primeiro jogador. E então era a vez do outro. E assim iam até que fossem escolhidos todos os demais.

Para o meu desespero eu não distava dos derradeiros, lá constrangido olhando de lado. Hoje vejo que sofria à-toa. Aquilo não dizia respeito a gostar de mim, como a me medir defeitos e qualidades, não. Mas sim e apenas as minhas habilidades futebolísticas.

Não me escolher para o time não tinha a ver com me escolher para amigo. Como eu me sentia pequeno à medida que ia sendo rejeitado nas escolhas de cada capitão. E à-toa. Vejo que somos mestres em equívocos e dramas.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

CAMBUI



Eu morava na pequena cidade com nome indígena, parada de bandeirantes. Sendo a minha primeira experiência urbana era-me mágico. Numa das barraquinhas de fruta a beira da rua existia uma maquininha de descascar laranja que me parecia a melhor invenção de todos os tempos. Achava-a linda.

Nas ruas de chão batido passava horas e horas brincando com meninos e meninas. Horas de sumiço e preguiça. Havia certo senhor com piscina em casa que nos deixava nadar. Mediante paga, lógico. Mas era baratinho. Embora bom mesmo fosse nadar no Rio das Antas, correr na chuva ou jogar bola no campinho.

Havia também certo senhor com criação de pássaros, muitos pássaros. Foi ali que ouvi o pio da araponga pela primeira vez. Que canto metálico de dar arrepios na gente. O senhor me deixava alimentá-la com mamões docinhos. Docinhos como os primeiros beijos. Foi ali que conheci certa brincadeira de abraço, aperto de mão ou salada-mista.

Eu me mudei há quase quarenta anos, mas na minha mente é como se os meninos ainda estivessem lá; congelados no tempo. Consigo vê-los exatamente como eram é dificilmente passa uma semana sem que me lembre de um deles que seja. Sei que se esqueceram de mim; mas não voltei e nem quero voltar. Prefiro ficar com a imagem de Terra do Nunca em minha mente, onde sempre-sempre estou em revisita.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Uma canção que passava

Uma canção que passava
Deixou um eco
Infiltrado às grades
Da minha mente
Que aí nem sei se
Por querer ou se
Por não saber sair
Em protesto se debate
Deixando-me enjoado
No repetido incessante
Brado único que sabe
 

sábado, 21 de fevereiro de 2015

Desmesurável



Na parede laranja
Um risco negro
De noite tempestuosa
De raios e rios
De águas quentes
De uma chaleira
Ebulindo águas
Chocas daquelas
Sem açúcar e pó
Apenas na taipa
Do fogão o dia todo
Espiando um quintal
De pé de laranja
De outra parede
Com risco cinza
Quente do fogo
Há pouco se ardendo
Maduro em frutos
Que foram
E agora somente
Sementes
Vivem expectativa
De um novo ciclo







quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Adão


E toda aquela região chamada Paraíso era de Adão; assim ele pensava. Um elevado que se estendia por uma planície rala de árvores, com gramas macias, animais mansos e águas transparentes. Adão tinha frutos, água e boa sombra à vontade. A temperatura era sempre agradável. Uma luz amena infiltrava as ramagens e vinha lhe despertar pela manhã, e tendo ao nariz aquele cheiro de campo ele caminhava por entre laranjeiras, pinheiros e primaveras, com seus olhos desafogados sempre encontrando a ternura azul do céu. Gostava de apreciar os orangotangos com suas brincadeiras, sempre aos casais. O que mais poderia querer? Contudo inacreditavelmente parecia lhe faltar algo. Às vezes imaginava ser ingratidão não se contentar com a vida que tinha; outras, imaginava normal supor haver algo a ser buscado. Até inventou uma palavra para significar essa coisa que não sabia ainda o que era. Via pássaros voando, voando alto, vindos de longe. Voar alto ele não podia, mas ir longe, sim, podia. E foi assim que seguindo certo chamado nascido da sensação de escassez que viajou ao Ocidente. Com dois dias de caminhada estava diante de uma floresta na divisa entre o Paraíso e o resto do mundo. Ele espiou o lugar. Sombrio e repleto de estranhos pios que pareciam vir direto das entranhas da terra. Olhando os troncos pareados teve a sensação de costelas, pela semelhança com a disposição dos ossos do peitoril. Nomeou o lugar Floresta Costela. Prestes a enfronhar-se ao local assustador caiu em si. Perdera o juízo! Sentiu certo enjoo. Olhou mais uma vez ao assombreado tentando divisar um pouco além das primeiras árvores. Não se via muito, o local era mesmo assustador. Deu de ombros, virou as costas: vou embora; mas mal virava e já desvirada. Havia o receio, sim; contudo algo o chamava. Deu de ombros outra vez. Começou a caminhada rumo ao desconhecido fazendo menos barulho do que onça em caça. Em função do medo ele se sentia estrangulado; e tremia, e suava, e respirava ofegante, e tinha um sangue correndo quente lhe correndo às veias. Caminhava na região labiríntica com a sensação de que uma calamidade fosse acontecer a qualquer momento. E não tardou e já experimentava o arder da fome e sede no peito, sensações para ele pouco conhecidas. A sede era sufocante; a fome, beliscada. Seguia assim mesmo, mesmo sem frutos, mesmo sem água; apenas penumbras, obstáculos e estranhos ruídos que mais pareciam lamentações. Algum tempo depois, que a Adão parecia dias, e devia ser mesmo, a falta de noção se justificava pelo sempre quase escuro da floresta, e suas vistas vinham turvas e o corpo bastante debilitado. Tinha em si a quase certeza de que se metera numa enrascadas das grandes. Sabia que ia num caminho de difícil volta. Nem precisa dizer que estava perdido. Foi por aí que ouviu certo chuaaaaa que lhe pareceu cachoeira. Entendeu ser delírio da sede. Uns passos a mais e fome e sede se esvaíram por um instante. Adão deparou-se com uma cena que o congelou. As árvores ali davam licença ao azul do céu que se mostrasse. Uma cachoeira como fosse de cristal abastecia fartamente um lago azul rodeado de flores. O turvo da visão não foi obstáculo para que visse. As margens entre borboletas coloridas um ser inigualável. Adão chamou-o mulher. Esta palavra “mulher” foi a mais doce que conseguiu imaginar e a guardava há tempos para algo especial. Foi a que criou para significar a coisa que não sabia ainda o que era, mas deveria suprir a sensação de algo a ser buscado. Qual o seu nome? Eva, a mulher respondeu com uma voz que Adão supôs de anjo. Quis saber se ela era um anjo. Ela disse que não sabia o que era anjo. Ele perguntou se ela voava. Ela sorriu, tímida. Não tenho asas. Ela disse espontânea, depois recolhendo o olhar, se comportando mais tímida ainda, entendendo que sua observação veio com tom de gozação. Mas desta vez Adão também sorriu, embaraçado, odiando-se pela pergunta estúpida. Ele disse que tinha sede. Ela lhe deu de beber. Ele disse que tinha fome. Ela lhe deu de comer o fruto de uma árvore que ele não conhecia. Ele adorou. Que fruta é esta? Ele quis saber. Não sei, ela respondeu. Chamo de Fruto da Árvore da Serpente, já que sempre uma serpente azul cá visita este assombreado a se deliciar dos frutos. Acho-a tão bela? Ela disse. A árvore ou a serpente? Ele quis saber. Não falo da árvore, embora também seja bela. Falo da serpente. Até converso com ela, na falta de alguém mais apropriado. Já sem sede e sem fome Adão começou a notar as formas de Eva. Lógico que ela estava nua. Ele sentiu algo inexplicável e em seu corpo o sangue entrou a correr de um jeito tal que provocava reações. Eva se envergonhou do olhar malicioso dele. Procurou ocultar partes do seu corpo como pode. Ela seguiu com ele. Ela sabia como sair dali da mata, não pelo lado do Paraíso, mas sim do Resto do Mundo. E foi para lá que foram, ou melhor, para cá. Nunca se separaram. Adão não soube mais voltar ao Paraíso, mas nem se importou. Nem tentou, a bem dizer. O que ele precisava para viver bem era a companhia de Eva. Ele viu que o sentimento de vulnerabilidade e o medo pelo não conhecido devem ser enfrentados para que novidades caiam aos dias do homem. A segurança do já conhecido e dominado é boa, mas traz como fruto geralmente apenas as mesmices de sempre. O novo, o novo mesmo, requer exposição e riscos.  

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

O QUE FAREI DE ALMOÇO



Ah, estou pensando
Para onde vamos
Na criação
No universo
Ela me vem com
Levanta o pé
Quero varrer
O que farei
De almoço

Eu fico quieto
Tentando não voltar
Pois o corpo está ali
Mas a mente não

Ela se irrita, eu
Não falo nada
Ela me queima um
Olhar de reprovação

Eu finjo indiferença
Ela bufa, agitada
Os pezinhos num toc,
toc, toc louco

Eu tentando
Fechar uma ideia
Nas alturas
Ela preocupada
Com tão pouco

Não consigo avançar
praguejo, irritado
Terminei o que me propus
Ela comenta, superior

Quem sabe a correta
Seja ela, disposta a ir
Apenas até onde nossa
Capacidade de ação for

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

A ESPERANÇA MORREU



A ESPERANÇA MORREU

Eu cinco anos; tempo chuvoso
Chocolate morno à caneca
O monótono toc, toc dos pingos
Galinhas jururus na tapera
Meu pai estabanado falando
A vaca branca morreu, morreu
Mamãe se recolhe, chocada
Pensou no leite dos doces seus
De repente o que fazer
Debruço no bloco de desenhos
Nas mãos lápis com cores
Desbotadas são os que tenho
Riscos anoitecidos descrevem
A vaca combalida no brejo
Os urubus a desmontando
Minha mãe se assusta, credo
Desenho de cadáver e urubus
É lá coisa de criança
Tadinha, mãe, da vaca
Morreu a Esperança
A vaca Esperança
Tadinha, tão mansa