Os pés descalços doíam de fazer
chorar. Tão gelado o capim geado. Isso depois do tamanho frio na noite de poucos
cobertores para irmãos empelotados num colchão de palha. O negócio era correr,
mesmo que com pés descalços e espinhados pelo gelado cortante. Era o jeito para
se aquecer. Algo quente para abrasar as goelas mal havia; malemá um café ralo. Tão pequena, mas já carecida de ajudar os pais na roça, pelos irmãos
mais novos dependendo deles. Era um mais velho e três mais novos. Alegria mesmo
era brincar com os vaga-lumes à noite. O sonho era trabalhar numa casa de
fazenda, como doméstica. Aconteceu. Não gostou. Serviço demais. O sonho era ser
a patroa. Aconteceu. Casou-se com um turmeiro. Mas era muita gente e muitas
contas. Não havia sossego nem no sono, tantos problemas. O sonho era trabalhar numa
casa de grã-finos, na cidade. Aconteceu. Mas eram dados há empatar muito em
amenidades e excentricidades. O sonho era buscar gente mais simples. Foi parar na casa
de uns velhos. Nada de melhor sorte. Muitas rabugens. O jeito era trabalhar para
pessoal mais jovem. Aconteceu. Não foi o que pensava. Pessoal de um universo tão
diverso do seu. Quase a punham louca. O sonho era trabalhar para a igreja, aí sim a
perfeição. Aconteceu. Perfeição nada. Havia quem a amolasse. Para viver bem
fingia não ver as malcriações. O sonho era ficar sem trabalhar. Aconteceu. Nada
bom. A perna lhe doía demais. Coisa sem solução. O médico ainda lhe recomendou
que jogasse bola, pois se parasse, por causa das dores, elas se intensificariam mais
e mais. E havia uma estranha falta de apetite. Sem falar da insônia. Ah, tempo
bom era o de criança. Não havia de comer, de calçar, com que se cobrir. Mas havia saúde,
viver sem dores, dormir gostoso. De que adianta sapatos e não poder andar? Tantos cobertores e dormir apenas uma hora por noite? Armários abarrotados de comida,
mas o corpo abandonado pela fome? Sem saúde não há sonhos. Como era prazeroso chegar em casa depois de
um dia de trabalho; a gostosa sensação de missão cumprida. A vida é
assim, um correr, correr, atrás não sei de quê. Um jogo bobo. Se se tem
o azul, não se tem as bolinhas brancas. Se se tem as bolinhas brancas, não se
tem o azul. Agora sim, Dona Zulmira, a senhora deve estar feliz. Volta para casa com a gostosa sensação de missão cumprida, e com raros louvores. Enfim o
azul e as bolinhas brancas. Se a senhora não os tiver, quem terá. Estou feliz
pela senhora. Uma felicidade dolorida e apertada, quase vontade de chorar. Vá
em paz. Os vaga-lumes nem os vejo. Devem estar visitando o céu, tentando voar tão alto
quanto à senhora. O azul é o céu; as bolinhas brancas são eles, que o azul miram. Azulmiram... A'zulmira'm...