segunda-feira, 29 de junho de 2020

AGORA

O tempo
o tempo
Eu tinha 7
pisquei
eis me aqui
com 100

saudade de mamãe
ninguém pronuncia
meu nome tão bonito
quanto ela

enchia a boca
dizia:
Jose Roberto

ficou tão feliz
com minha felicidade
com a Maria
a Maria Benedita

a menina de 16
menina de olhos azuis
tão bonita lá da
Fazenda da Paz

nem pensei
comprei o primeiro
sapato e me casei

o padre João Guerra
disse que fiz bem

cuida bem dela,
ainda brincou
como não cuidaria?

Ah, tanta coisa
que lembro
da feitura da igreja
com a turma do Rigoto

do acidente da 
filha do Floriano
das entregas do Chico Telegra
das manhãs orvalhadas
no Paraná

"Eu nasci num recanto feliz
Bem distante da povoação
Foi ali que eu vivi muitos anos
Com papai mamãe e os irmãos"

lá lá lá lá lá
Êh música bonita
melhor cantar
melhor voltar

o Custódio
voltou da guerra
viveu bem
contou-me o segredo

a chave foi sair
da guerra também
dentro da
cabeça dele

nossa cabeça
é que nos mata

sinto o cheiro
do feijão com torresmo
da minha filha Tereza
melhor recompor-me

o segredo para
viver mais 100 
é gostar e estar
 no agora
a vida não gosta
de quem chora

quinta-feira, 11 de junho de 2020

o fantasma do sr kurt

o fantasma do sr kurt
entrou na máquina de lavar
a máquina ficou doida
não obedecia comandos
passou a agir por ela mesma
chamaram o caça-fantasmas
ele pensou, pensou
a máquina precisa de energia
ele desligou a tomada
o fantasma do sr kurt
deixou a máquina
foi para algum provisório
até encontrar outra máquina
(acho que não deveria, mas
vou falar. O nosso corpo,
essa coisa de água e vazio
é máquina onde há espirito
e energia. se acaba a
energia. Deixa-nos o
espírito, que não é
nosso, mas o que somos.
somos o espírito do sr kurt
o observador que vê
inclusive os pensamentos
maquinais voando
feito trailers de filmes.
não entendo isso totalmente.
mas aposto que é assim)

terça-feira, 2 de junho de 2020

Delírios da quarentena

Minha mãe com meu pai na roça, perto de isolados em função da pandemia. Ela lhe pede para ir ao mercado para umas comprinhas, na Capela. Incluindo, alho. Pergunta-lhe se precisa anotar. Ele faz não com a cabeça, com veemência. - mas não me esqueça do alho, hein! Ela adverte. Meu pai endurece a boca. Não gosta que ela lhe sugira ser muito "esquecido". Voltando da cidade, meu pai deixa a caixa com as encomendas sobre uma mesa. Sai para ver uma vaca chegadinha. Dali a pouco, escuta - TADEEEEEEEEEEU! Ele levanta a cabeça de jeito a suspender a orelha direita, a que escuta melhor. Eleva as sobrancelhas. Que será que fiz de errado, pensa. - Tadeu, seu miolo mole. - Mamãe diz. Tem uma mão na cintura numa postura inquisidora. Meu pai cresce os olhos como dissesse "o que foi"? - Cadê o alho que falei que era o principal? Meu pai faz postura de susto. Olha para cima. Não se lembra de haver pedido o alho. Por que lá no mercado é assim. Você faz a encomenda. Sai para outras coisas. Eles colocam tudo numa caixa. Depois a gente pega a caixa. Ele não conferiu. Ele não lembra se pedir, mas tem certeza de que não conferiu. Ali, diante da minha mãe com os olhos injetados de eletricidade, ele pensa que era melhor ficar quieto. - Eh, Tadeu! Você parece criança. Não faz nada certo - mamãe diz. Sai pisando alto. Mais tarde meu se depara com ela usando alho no preparo do feijão. Ele chega mais perto, para conferir. Podia não haver alho no tempero do pilãozinho que ela socava. Mas havia. Ele sente. Ele puxa o ar. Minha mãe olha para ele, irritada, como dissesse o que foi? Ele olha para casquinhas de alho perto de taipa do fogão como asinhas de borboletas. Estica o beiço na direção delas. - é o alho que você comprou, - mamãe diz, voz contrariada. Meu pai desmancha a cara como dissesse “ué, mas eu trouxe então”? - A réstia apareceu aí, atrás da porta. - ela diz. - decerto que eu mesma tirei da caixa e pus, sem perceber. - Ela parece odiar aquilo que diz. - Também... é tanta coisa para eu fazer. Por que é tudo eu, tudo eu. - Ela diz, disparando as palavras - Até faço coisas sem ver. Essa maldita quarentena está me pondo louca, Tadeu! eu gosto de conversar, Tadeu. Conversar, entende. Você fica aí, com essa cara de mudo... meu pai sai sorrindo. Minha mãe morde os lábios. Ela detesta estar errada. Ainda mais numa situação de caduquice daquelas. Um canto de joão-de-barro que vem do pomar lhe parece gargalhada. Ela faz um chiste com a boca. Oh, diacho!