eu na infância era bem inventador
por causa da sengracice dos dias
minhas criacionices eram mais com os lápis
de cor alegradores das minhas horas
amigos lá a gente tinha pouco
brinquedos praticamente nada
então era assim quase tudo invencionado
sei do meu traço de esquisitura
lá espiando passarinhos entre laranjeiras
chamavam me mentiroso por dizer que
entendia a linguagem das corruíras
é que o cheiro do orvalho
tinha poder de me passarinhar
e aí eu abria os ouvidos além
daqueles dois que todo mundo tem
tinha outra também
embora eu não confiasse aos outros
acontecia que eu gostava de
sentir o gosto das cores
na minha cabeça eu sentia
e dos sons também
e dos sons eu ainda imaginava formas
era assim como formas dentro
de uma caixa dourada dentro do pensamento
com um buraco para gente despuxar as mãos
então pondo uma mão sem ver
eu sentia o macio o áspero o pontudo
o gelado tudo tudo em combinação
com o som tinha um apalpamento do som
as vezes eu deitava na grama
fechava os olhos e vinha algo
era só esperar um tiquinho que vinha
como um quadro vivo cheio de cores
girando girando girando
como cores de energia
as figuras nunca se repetiam
outra vez diziam ser mentira minha
mas não era gente juro
eu pensava que essa língua
era a língua de Deus e
assim Ele conversava
comigo com essas cores
em vórtices girando girando
quando eu fingia que uma caixeta era um barquinho
avançando num mar bravio em minha visualização
eu aventurava até ouvir os gritos de euforia e medo
das formigas tripulantes
quem garante que nessas aventuras a gente
fora do espaço/tempo não acesse vividos
por nossos ancestrais
nas cascas das árvores eu via mirabolâncias
as vezes até mostrava para os primos
era inútil ninguém via
eu até passava para o papel para verem
eu por mim não teria imaginacionice de desenhar
por exemplo uma briga daquelas de raposas
mas outra vez duvidavam de mim
por mim tinha um sol preso em vários lápis de cor
eu tinha que combiná-los direitinho
o tanto certo de cada cor para o sol se revelar
por que aí eu revelaria seu segredo
mas dessegredo que nunca amontei direitinho esse sol
só me vieram sois falsos
eu pensava que as flores e as folhas eram borboletas
que para descansar se disfarçam de planta
num outono um vento desligou um bocado das folhas
da velha paineira lá a boca do abismo
tinha folhas que não era folhas
eram canários pardos disfarçados
que reavivados saíram voando
eu vibrei
confesso que não avancei muito em minha maturidade
desde aqueles dias vejo muita coisa invertida
as pessoas vão saindo da infância e no automático
se adultecem sem perceber
de algum modo aos cinquenta eu ainda resisto
ainda prego coloridos ao canto dos pássaros
inequívoco que as vezes atino que eu seja louco
mas tem hora desconfio que loucos são os outros
que supõem que viver adultice e isso
de ficar correndo correndo atrás não sei de que
pondo a culpa sempre em algo fora
sem atinar perseguem bolhas de sabão
até hoje não acho graça na realidade
que para mim na verdade não é realidade
é só uma coisa que enxergam igual
um sengracismo sem tanto hipnose
são canários pardos entre folhas secas
embora todos concordem ser folhas secas
gosto de prosear com vagabundos e loucos
honrando os traços de inutilidade que trago desde cedo
concordamos que não vale a pena perder
tempo com o passageiro
se o Manoel de Barros fosse um menino
contemporâneo meu lá na roça
é capaz que fôssemos amigos íntimos
Pintura:
Reinaldo Lima