domingo, 11 de fevereiro de 2024

Coisas da estrada

Lá de casa, desacorçoado das mesmices das envolturas, eu ia espiar a corcova da estrada, lá embaixo. Um anzol a me atrair. Algo crescia dela para o mundo. Um crescer que me descrescia pra ainda mais pequeno. Era esquisito, misterioso, desafiador. Às vezes vinha um carro. Eu crescia os olhos. Primeiro, o ruído. Num anúncio de devir. Eu ajustava os ouvidos. Depois, o carro. Aquela coisa misteriosa que avança sem o traçado dos bois. Depois, sobrava a poeira, alardeando que algo se foi. Eu sobrava limpando os olhos, trancado de uma sensação pesada de passado. Um abafado se foi pra sempre. O céu passarinhava-me gorjeios. Eu atinava que queria me dizer que eu deveria buscar outras imagens. Viajar que nem os passarinhos, nômades. Um dia vou, vou, pensava, já tremendo de medo de deixar de ser-me. Um dia fingi-me corajoso. Fui. Topei com variadas extravagâncias. Forças desejantes arrastaram-me pra vales, montanhas e ainda além. Vi gentes tão esquisitas! Como sou descompetente pra exageros, remendei-me o quanto pude de normoses. Às vezes atino que a madrugada brisa-me que devo regressar. Já dormi nisso. Mas é questão sem inteireza. Confesso que deslembro o caminho da volta. Suponho que qualquer algo se entupiu em meus poros. Desconstruí-me na estrada, conforme temia. Desconfio que a poesia não habita mais meus olhos.


quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

DISTÂNCIA




Ela me olhou com indiferença
Disse que eu não era pra ela
“Será algo errado comigo?”
Pensei. Isso lá por 1985
Na semana passada, o reencontro
Ela me olhou novamente, olhou
Uns olhos de gata assustada
Eu não disse nada, nadinha
Ela também não
Decerto ainda pensou
Que não sou pra ela
Concordei

É SOBRE O CORDÃO VERMELHO

Quando a minha avó partiu, lá por 1979. Eu tinha 8 ou 9. Quanta gente na grande casa verde ao redor da praça. Apenas filhos, 16. Imagine! O vô, os agregados, netos, bisnetos, amigos. Um inédito sentimento corroído me mordia por dentro, gelado. Uma prima mais velha gemeu: coitadinha! Gostava tanto da família, assim junta. Agora, não está aqui ver. Espiei de longe o caixão. Não via muito sentido naquela reunião. Todos ali pela vovó; mas ela não estava ali para ver. Eu disse qualquer coisa. O tio Antônio Neco falou que as pessoas se reúnem pelos vivos. Para se apoiarem mutuamente. Gostei daquilo. Senti se acender algo como um cordão vermelho corrido de um calorzinho gostoso, que nos conectava a todos ali, com fossemos apenas um. A vovó trabalhou tanto nisso. De algum jeito, era ela vivinha ali. O gelado do meu peito recuou um pouco. Foi a primeira vez que dormi tão tarde. Já devia ser mais de duas. Meu pai me levou para o banco de trás de um fusquinha azul. Olhei para a praça vazia. O vento da alta hora fazia tremer as arvorezinhas redondas ao redor coreto, numa solidão pontuda. Mas do outro lado da rua, na grande casa verde, a solidão não era tanta. Ali havia muitos, e podiam contar uns com os outros. Eu adormeci um pouco menos escurecido. Se não nos sentimos sozinhos, a dor doe menos.

terça-feira, 30 de janeiro de 2024

INSÓLITO

eu na infância era bem inventador
por causa da sengracice dos dias
minhas criacionices eram mais com os lápis
de cor alegradores das minhas horas

amigos lá a gente tinha pouco
brinquedos praticamente nada
então era assim quase tudo invencionado

sei do meu traço de esquisitura
lá espiando passarinhos entre laranjeiras
chamavam me mentiroso por dizer que
entendia a linguagem das corruíras

é que o cheiro do orvalho
tinha poder de me passarinhar
e aí eu abria os ouvidos além
daqueles dois que todo mundo tem

tinha outra também
embora eu não confiasse aos outros
acontecia que eu gostava de
sentir o gosto das cores

na minha cabeça eu sentia
e dos sons também
e dos sons eu ainda imaginava formas
era assim como formas dentro

de uma caixa dourada dentro do pensamento
com um buraco para gente despuxar as mãos
então pondo uma mão sem ver
eu sentia o macio o áspero o pontudo
o gelado tudo tudo em combinação
com o som tinha um apalpamento do som

as vezes eu deitava na grama
fechava os olhos e vinha algo
era só esperar um tiquinho que vinha
como um quadro vivo cheio de cores
girando girando girando
como cores de energia

as figuras nunca se repetiam
outra vez diziam ser mentira minha
mas não era gente juro

eu pensava que essa língua
era a língua de Deus e
assim Ele conversava
comigo com essas cores
em vórtices girando girando

quando eu fingia que uma caixeta era um barquinho
avançando num mar bravio em minha visualização
eu aventurava até ouvir os gritos de euforia e medo
das formigas tripulantes

quem garante que nessas aventuras a gente
fora do espaço/tempo não acesse vividos
por nossos ancestrais

nas cascas das árvores eu via mirabolâncias
as vezes até mostrava para os primos
era inútil ninguém via
eu até passava para o papel para verem
eu por mim não teria imaginacionice de desenhar
por exemplo uma briga daquelas de raposas
mas outra vez duvidavam de mim

por mim tinha um sol preso em vários lápis de cor
eu tinha que combiná-los direitinho
o tanto certo de cada cor para o sol se revelar
por que aí eu revelaria seu segredo
mas dessegredo que nunca amontei direitinho esse sol
só me vieram sois falsos

eu pensava que as flores e as folhas eram borboletas
que para descansar se disfarçam de planta
num outono um vento desligou um bocado das folhas
da velha paineira lá a boca do abismo

tinha folhas que não era folhas
eram canários pardos disfarçados
que reavivados saíram voando
eu vibrei

confesso que não avancei muito em minha maturidade
desde aqueles dias vejo muita coisa invertida
as pessoas vão saindo da infância e no automático
se adultecem sem perceber
de algum modo aos cinquenta eu ainda resisto

ainda prego coloridos ao canto dos pássaros
inequívoco que as vezes atino que eu seja louco
mas tem hora desconfio que loucos são os outros 
que supõem que viver adultice e isso 
de ficar correndo correndo atrás não sei de que
pondo a culpa sempre em algo fora
sem atinar perseguem bolhas de sabão

até hoje não acho graça na realidade
que para mim na verdade não é realidade
é só uma coisa que enxergam igual
um sengracismo sem tanto hipnose
são canários pardos entre folhas secas
embora todos concordem ser folhas secas

gosto de prosear com vagabundos e loucos
honrando os traços de inutilidade que trago desde cedo
concordamos que não vale a pena perder
tempo com o passageiro

se o Manoel de Barros fosse um menino
contemporâneo meu lá na roça
é capaz que fôssemos amigos íntimos

Pintura: Reinaldo Lima

sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

AGORA

AGORA

Chegou 2024. Chegou o ano que vem. Meu pai sempre falava (fala ainda), no ano que vem isso, no ano que vem aquilo. Nunca gostei. Risos.

HOJE. Deus está no agora. Se estou com a cabeça no passado ou no futuro, estou sem Deus. Ele está no agora. Ele é agora. É agora que os oceanos se movem. Que os peixes nadam. Que os pássaros voam. Agora.

A laranja do futuro será laranja se agora a seiva certa for enviada a flor, a luz adequada do sol envolvê-la, a vespa ou o vento fizerem seu trabalho de polinização.

O viço vivo está sempre no agora. A nosso compromisso (semeadura) deve ser com o agora. Então vamos firmes. O que chamamos “tempo do Senhor” trará o fruto maduro.

A questão é plantar e soltar. E não ficar na expectativa para o futuro, sobre quando virá. Não. A Glória está no agora onde o Pai é conosco e então temos tudo o que precisamos, enquanto as sementes espirituais operam.

Eu e o Pai somos um. Onde estou é Terra Santa. Devemos olhar agora sem as sombras do passado e sem as expectativas gasosas para o futuro.

Se me vem que devo estudar para no futuro melhorar minha remuneração. Não bem caso de futuro. Devo estudar agora. Devo me inscrever no vestibular agora. Devo me preparar agora.

É no agora que está o calor da vida, a força da mudança. A unção do Pai

Um 2024 cheio de agora para nós.

sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

No Ano Novo, apenas sejamos.

O que é sempre foi e sempre será. 

O que deixou de ser, nunca foi.

O Absoluta não se explica.

Se sente e pronto. É o que é.

O que nos levou a sentir pode ser descartado. 

Não reside nada especial aí.

Não queiramos sistematizar, ensinar.

Nada é o que parece ser.

A Onda onipresente traz as energias 

e direcionamentos necessários.

Essa Onda é o que é e sempre foi.

Não vejamos o que vemos,

Pois o que vemos é o que não é.

Se alcançarmos além, sentiremos o incognoscível.

Olhemos para dentro. Sintamos.

Não há nada fora que valha uma lágrima nossa.

Da floresta que desconhecemos 

Somos influenciados pelas sombras,

sem saber que são sombras.

Quando reconhecemos algo, 

pensamos extrair a árvore.

Sem cuidar que arrancamos apenas o visível.

Tanto tempo a árvore lá,

Impôs desdobramentos ao ecossistema.


No Ano Novo, firmemos compromisso

Com o sentir. Apenas sejamos.



sexta-feira, 9 de junho de 2023

herói da noite

papai foi a vila

preparou com capricho
o cavalo carrapicho
 
foi limpar arroz
comprar sal
linha e retrós
 
mamãe ficou comigo
já é noitinha
a lenha estrala em labaredas
e o feijão já cheira gostoso
 
mamãe de ouvidos abertos
busca pelo tropel do carrapicho
late o cão Rex
mamãe sente o peito apertado
 
um curiango pia longe
na mente de mamãe
farfalham preocupações
 
olha, escute o tropel
não, não acho que não
será será, será
mamãe abre a janela
espia lá fora

 

o vento faz tremer
a cortina de chita

é a chaminha da lamparina

mamãe se abraça se agita

 

é capaz que sejam bezerros
ou vento nas bananeiras
mamãe cresce os olhos
 
a lua já apareceu
e cadê o Tadeu
Ê Tadeu, ê Tadeu
 
deve estar de conversa
com o Zé Pereira
se deixar fica de prosa
a vida inteira
 
aí tropel outra vez
ou será o vento de novo
não... agora é mesmo
ela espia lá fora
 
sente o cheiro do roçado
no instante de dúvida

 
mas seu rosto se acende em riso
o tropel do carrapicho
enche a noite de ritmo
 
até que enfim
até que enfim
não gosto que seu pai
a noite por aí
 
Deus que livre e guarde
já pensou se cai
ela suspira
faz em nome do Pai
 
papai aparece
como um herói da noite
a longa capa cinza
cobre um corpo de homem
 
mas abaixo do chapéu escuro
vê-se o rosto
de menino tímido
 
papai lança sobre a mesa
um o pacote
sem dizer nada mamãe
se abre em riso
 
toda vez que vai a vila
papai trás para nós
um pacotinho com balas
 
mamãe adora essas balas
adora esse carinho
como beijinhos
açucarados
 
afoita ela desembrulha
a bala que lança a boca
com a língua vai rodando
a bolotinha açucarada
 
recebe nas balas
o beijo que meu pai não deu
contido por um jeito
tão antigo


na chaminha da lamparina

o menino vê um formato

de coração

domingo, 5 de fevereiro de 2023

Premência

 

Eu tenho uns sonhos que, se contar, é capaz que duvidem. Mas, não me preocupo. Conto mesmo assim. Desta vez sonhei que estava em Consolação e que escrevi um poema sobre passado, presente e futuro. Que publiquei o texto na internet. E que o meu pai veio me falar que seu amigo José Pereira leu o texto e gostou. Disse que gostou muito. Aí meu pai me disse as palavras que o José Pereira lhe disse. Eu observei: pai, estou admirado com o entendimento avançado do José Pereira, e, igualmente, impressionado com o que senhor reteve das palavras dele. Significa que o senhor também está no mesmo nível de conhecimento/entendimento dele. Eu não lembro de nada do suposto poema que escrevi, e nem das palavras que meu pai falou. Incrível como nos esquecemos de tudo segundos após acordamos. Fica apenas a ideia. Ocorre que meu pai fez uma observação final e disso lembro. Ele disse, para finalizar, que o José Pereira arrematou dizendo que “é no presente que está a premência”. Refletindo, isso já acordado, sobrei surpreso. A palavra premência não está entre as que uso coloquialmente. Mal sei seu significado: urgência, que exige rapidez, conferi depois. Observo primeiro que, na verdade, em minha mente não haveria o verdadeiro José Pereira e nem o meu verdadeiro pai dizendo coisas. Seria o meu pai da minha mente falando o que o José Pereira teria dito. Enfim, mas seria o José Pereira da minha mente também. Resumindo... Sou eu apenas. Apenas eu de mim para mim mesmo. Mas como seria possível se mal sabia o significado da palavra? Outra, e este é o segundo ponto, o que seria isso de “é no presente que está a premência”? No presente que estaria a urgência? Não faz sentido... Então busquei refletir. Conclui que premência é o ato de premir ou premer... que seria o mesmo que apertar, espremer. Então, pensemos numa laranja. Se é laranja do passado, com lá aquelas das laranjeiras da casa da madrinha Lázara que eu gostava tanto. Até recordo o sabor. Se é laranja do futuro, da chácara que haverei de organizar, até imagino o dulçor. Agora, isso tudo é imaginação. O verdadeiro dulçor do caldo da laranja posso experimentar apenas no agora. Apenas nele posso “premer” a laranja que Luciana acabou de trazer da feira, para conhecer o sabor, o verdadeiro sabor. Então, o José Pereira está certo. Não devo sobrar imerso em suposições, pelo que já conheço. "É no presente que está a premência". Apenas neste grande agora posso e devo “apertar” o que me vem, para, com curiosidade de criança, mente limpa, verdadeiramente conhecer, e nisso devo me fiar. Agora, de onde me vem essa mensagem, sigo sem saber. De qualquer forma, agradeço ao José Pereira (que já não está mais entre nós), e ao meu pai.



domingo, 18 de dezembro de 2022

completude

do sono deste mundo
acorda no outro o menino
 
reencontra tanta gente querida
não se cabe de alegria
corre pula rodopia
 
assombra-se pelos pais
também meninos
e por todos poderem voar
 
recorda-se de tudo quanto
havia se esquecido
e experimenta uma completude
de espantar
 
sabe da ausência de alguns
reconforta-se porque
em breve estarão lá
 
desconhece que para eles 
o mundo de cá por hora
parece manco



quarta-feira, 16 de novembro de 2022

nós


confesso que
às vezes não gosto do
adolescente encabulado
que fui

porém conversei com
ele um dia desses
ele me ama me ama
acha bonito quem sou
comove-se comigo
admira-me

comovi-me também
pensando bem
só tenho a agradecê-lo
por não tem ficado lá
por haver me trazido perto
de onde estou

(muitos amigos ficaram lá
nem preciso dizer)

abracei-o
foi emocionante
disse-lhe que fez
um ótimo trabalho

quis saber dele
como poderia compensá-lo
depois de tanto bloqueio

ele disse investiu em mim
que deseja apenas que eu vá
que ainda tem muito a ser buscado

que estará comigo
que eu seja os sonhos dele
que eu valorize isso
que eu veja tudo quanto
já aconteceu

alertou-me que não gosta
quando me comporto como ele
que preciso me olhar
sentir que não sou mais ele

por fim disse
que eu seja livre
que eu seja leve
que nos leve
e que pare com essa de
querer ser impecável