O Pipo
chegou examinando por baixo da camisa. Torceu o nariz para o estrago do
derradeiro tombo. O Skate, debaixo de um braço. Na sala antiga a Bíblia aberta
na Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios, que trata da unidade e superação
dos conflitos em comunidade. A casa é antiga, sim; mas não velha. Foi
reformada. Muito bem reformada, mantendo-se o estilo antigo, que ficou em tudo.
Nos detalhes, no ar.
Os mais novos abeiravam a churrasqueira e o freezer. Os mais velhos iam bem instalados à sombra da sala grande, que engloba o banheiro e praticamente a cozinha de outrora. O mesmo em todos os grupos. As lembranças. Os risos. As histórias vinham caudalosamente. E aquele DKV do Tio Vitor que fomos à praia. A roda saiu e nos passou. E a Belina do Wando? Como era gostoso deitar no porta-malas? E dos cachos de banana na praia, se lembra? Levávamos cachos madurinhos e dependurávamos às barracas. Aí íamos puxando conforme a fome vinha. Que delícia. Nunca mais comi bananas tão gostosas. E isso, e aquilo. Ninguém falava mal de ninguém. Nem de política, nem futebol. Nem reclamavam da crise. De nada mesmo. Nada.
A Luciana sempre-sempre falava desse pessoal do “Caconde”, mas eu não esperava tamanho acendimento. O Antônio Augusto atirava água valendo-se de uma mangueira. Dizia que era para refrescar a coberta da churrasqueira; molhava menos o telhado e mais o povo, que não reclamava e ainda fazia festa. Ele era o mais encalorado. Mais cedo eu já o tinha visto passando um pano de chão molhado no rosto, para se refrescar. Alguém falou, mas o pano é de chão? Ele sorriu, passando o pano com mais entusiasmo. Como não fosse o pano de qualquer chão, mas sim de um chão especial. A Adriane passou agitada. Que entusiasmo. Parecia ter um "redemunho" em si. E alguém ainda disse que ela parecia meio desaminada. Supus ser brincadeira, mas depois fiquei na dúvida. "Alguém me falou, que você me enganou, eu não posso acreditar. Eu preciso saber, se foi mesmo você, que mandou me avisar”. Milionário e José Rico cantavam ao som, ajudando a engrossar o alarido.
Alguém me
chamou de Renato. Tudo bem. Eu olhei sorrindo, no ar um cheiro de madeira e
churrasco. Eu nem sabia bem quem eu era. (Risos). Digo sobre a minha posição na
árvore genealógica, já que sou parente por afinidade, agregado. A minha esposa que é
consanguínea.
O Tio
Anísio estava sentado, parecendo distante. Decerto ia com a cabeça em outros
tempos. Quem sabe até visse os antigos, rondando. O menino Pipo olhou para o
tio Anísio. Pareceu não gostar do que via. Fez uma graça, sorrindo. O tio não
deixou sua circunspecção. O Pipo saiu um pouco frustrado, recolhendo o sorriso,
então parecendo mais invocado com o ralado do tombo.
Fomos
afundando casa adentro, conversando com um e outro. Minha esposa dizendo esse é
meu marido, eu com um riso amarelo. Eu conhecia muitos dos presentes, contudo
individualmente. Aquele bocado ajuntado de gente eu ainda não tinha visto. Dava
liga bastante explosiva. A fala mais grossa dos homens contrastava ao ruidoso
estridente das mulheres e crianças. Gritos, vozes, risos. Um zunzunzum
crescente que tomava corpo e ocupava cada canto do lugar, recrutando cada um
numa espécie de encantamento.
Recostei-me a uma coluna. Vi a Vera Dias quebrando nozes com um martelo na cozinha. O Paulão veio explicar que a melhor opção era mesmo por Poços. A estrada para o Palmeiral estava em petição de miséria. Depois foi ver o que a Terezinha queria. Aí veio um, contou uma. Saiu. Outro veio e falou que o primeiro era bom, mas mentiroso. Então contou e contou. O primeiro voltou. O segundo saiu. O primeiro disse que o segundo não era de confiança, que eu tomasse cuidado. Mas diziam daquele jeito, não se fazendo passar por sérios, sorrindo e sorrindo. Tudo brincadeira.
Recostei-me a uma coluna. Vi a Vera Dias quebrando nozes com um martelo na cozinha. O Paulão veio explicar que a melhor opção era mesmo por Poços. A estrada para o Palmeiral estava em petição de miséria. Depois foi ver o que a Terezinha queria. Aí veio um, contou uma. Saiu. Outro veio e falou que o primeiro era bom, mas mentiroso. Então contou e contou. O primeiro voltou. O segundo saiu. O primeiro disse que o segundo não era de confiança, que eu tomasse cuidado. Mas diziam daquele jeito, não se fazendo passar por sérios, sorrindo e sorrindo. Tudo brincadeira.
Os mais novos abeiravam a churrasqueira e o freezer. Os mais velhos iam bem instalados à sombra da sala grande, que engloba o banheiro e praticamente a cozinha de outrora. O mesmo em todos os grupos. As lembranças. Os risos. As histórias vinham caudalosamente. E aquele DKV do Tio Vitor que fomos à praia. A roda saiu e nos passou. E a Belina do Wando? Como era gostoso deitar no porta-malas? E dos cachos de banana na praia, se lembra? Levávamos cachos madurinhos e dependurávamos às barracas. Aí íamos puxando conforme a fome vinha. Que delícia. Nunca mais comi bananas tão gostosas. E isso, e aquilo. Ninguém falava mal de ninguém. Nem de política, nem futebol. Nem reclamavam da crise. De nada mesmo. Nada.
A Luciana sempre-sempre falava desse pessoal do “Caconde”, mas eu não esperava tamanho acendimento. O Antônio Augusto atirava água valendo-se de uma mangueira. Dizia que era para refrescar a coberta da churrasqueira; molhava menos o telhado e mais o povo, que não reclamava e ainda fazia festa. Ele era o mais encalorado. Mais cedo eu já o tinha visto passando um pano de chão molhado no rosto, para se refrescar. Alguém falou, mas o pano é de chão? Ele sorriu, passando o pano com mais entusiasmo. Como não fosse o pano de qualquer chão, mas sim de um chão especial. A Adriane passou agitada. Que entusiasmo. Parecia ter um "redemunho" em si. E alguém ainda disse que ela parecia meio desaminada. Supus ser brincadeira, mas depois fiquei na dúvida. "Alguém me falou, que você me enganou, eu não posso acreditar. Eu preciso saber, se foi mesmo você, que mandou me avisar”. Milionário e José Rico cantavam ao som, ajudando a engrossar o alarido.
De
repente, correria. Era como chegasse mais parentes. Fui ver. É que abriram um
banner fotográfico. Uma surpresa. O ar antigo renovou-se como se um vento
varresse a casa. Engasgos, olhos embargados, alguns às lágrimas mesmo. Eram doze filhos. Vivos hoje, apenas quatro. As Tias Ruth, Neuza, Dete e o Tio Vitor. No
banner a Vó Gélia com os doze, os moradores originais da casa reformada. A
emoção dos mais velhos era por ver aquelas pessoas em tamanho quase real. Era
quase como vê-los novamente com vida. Os de idade intermediária entenderam o
choro dos antigos. Os mais novos não entenderam bem. Quase acharam engraçado.
Em seguida intuitivamente todos se amontoaram para uma foto coletiva. O banner
também foi, estimulando uma foto de atualização da família. Enquanto várias
fotos eram feitas as pessoas cantavam: “derrama ó senhor, derrama ó senhor...”.
Nessa
onda de emoção, como se os falecidos realmente baixassem ali, um mais novo
começou a imitar o tio Mirtu. Nova euforia. Cercaram-no. Pareceu que realmente
o tio Mirtu incorporava-se ao André, que até se assentou, pois o tio Mirtu
vinha desacostumado de corpo. Ô mãe. Ô mãe. Ele chamava a mãe Eugélia. E ia
desfiando o nome dos irmãos: Ruth, Fiica, Bizi, Vitor, Dete, Neuza, Nelito,
Lila, Duca, Zezé, Orga. Ele ia falando, xingando. Xingando ao modo dele, um
pouco infantilizado. Uma fala mansa e pastosa, meio comprida. Nossa,
igualzinho; houve quem dissesse. Pela emoção dos mais velhos vi que a imitação
era bem próxima de perfeita. Até pediram para desligar o som. Eu mesmo
desliguei. Quase perguntavam ao tio Mirtu sobre os outros, como estavam.
Espantou
o tio Mirtu o parabéns para você e o pessoal chegando com um bolo de
aniversário para a Ana Laura. Ela ficou no centro de uma roda, feliz, cantando
junto, quase dançando como jogasse capoeira. Depois do estralar entusiasmado de
mãos e boca adoçada a bolo e sorvete começaram um batuque. “Esta família é
muito unida. E também muito ouriçada”. Uns cantavam, outros dançavam. Todos
sorriam. Parecia uma tribo em festa. Pensando bem, é mesmo uma tribo.
O Pipo
voltou a insistir com o Tio Anísio. “E esse batuque...”. O tio Anísio olhou
para ele sem dizer nada. “Está gostando?” O Pipo insistiu. O Tio Anísio fez um
gesto de samba balançando os dedos indicadores para cima e para baixo. Sorriu.
O Pipo gostou que o tio sorrisse e também sorriu, abertamente. Ali tinha cheiro
de ontem, sim; mas também centelha do amanhã. Naquele sorriso dos dois era
futuro e passado sorrindo um ao outro. A foto coletiva era um presente para o
futuro. Para daqui 50, 100 anos. Para que os futuros membros vejam como a
família se compunha no início de 2016.
Numa
agradável ociosidade deitei-me à muretinha arrematada em vermelhão da varanda
para a rua. O zunzunzum era como fosse apenas uma voz. Uma única voz. A voz da
família. Ancestral. Como se cada uma daquelas cerca de 80 pessoas ali fossem membros de um
só corpo, como São Paulo constou na referida carta aos Coríntios. Espiei as
três: Ruth, Neuza e Odete. O Tio Vitor não estava. Papeavam sentadas. Sorriam e
sorriam. A vontade ali era apenas fazer comentários construtivos sobre qualquer
coisa que fosse. O coração destravado clareia a vida da gente, provoca
sorrisos. Gostei que meus filhos tivessem do sangue daquela gente.
Não consigo ter comentários diante de tamanha verdade tão explícita e que eu jamais me dei conta. OBRIGADA Kirk! Tamanha graça e poesia só me fazem acreditar na presença de Deus em colocar você ao lado da Lu e poder estar presente neste dia tão especial.
ResponderExcluirQue seu Dom da escrita possa continuar trazendo o olhar mais certeiro sobre a realidade mais poética!
Incrível o sentido de passado no futuro em um único olhar figurado nos citados Pipo e Tio Anisio! Obrigada novamente.
Quanto à questão do espaço, devo dizer que fiquei mesmo emocionada! Quando me aventurei em mexer no templo sagrado da mãe mais doce e forte que nos ensinou esse amor que transcende a gerações, pedi a Deus que me concedesse a sabedoria para atualizar o espaço da vivência sem matar ou esmagar o passado em detrimento da modernidade fria da moda, e que eu pudesse fazer da arquitetura um meio para a identidade e aconchego do LAR que esse templo foi e é para tantos Gonçalves, Dias, Almeidas... Enfim, a Sabinada da Dona Eugélia!!!
E por fim, obrigada, outra vez por conseguir ver a essência do espaço que através da tua leitura pude ver aquilo que no início era apenas instinto e respeito! A arquitetura se cumpriu e foi pelo seu olhar.
Você que está de parabéns, Adriane. Pelo brilho pessoal, por criar seu filho com liberdade de criança e sensível aos mais velhos, pelo (seu) respeito à família e sensibilidade profissional, pelo que se vê na reforma da casa de sua avó. A Arquitetura ali cumpriu seu papel, através de você. Obrigado pelo comentário.
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