segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Formulário do censo de 1970



Depois de vários dias de chuva o dia amanheceu de sol. Saí descalço, pulando, sentindo o chão geladinho e o cheiro da terra ainda molhada. Do meu embornal o Tio Otávio tirou um formulário do censo de 1970, (meu pai foi recenseador e sobraram muitos formulários). Dobrou, dobrou, redobrou, tridobrou. Com esmero reforçou cada vinco, especialmente o bico. Abriu a peça como fosse leque. Conferiu as asas. Alinhou. Balanceou. Fez com uma mão como fosse lançar uma lança. Enfim lançou como lançasse uma lança. O aviãozinho voou, voou. Sobre a casa, o abacateiro, a estrada. Correu uma brisa. As folhas do abacateiro se agitaram chiado. O aviãozinho foi alçado às alturas. Meus olhos brilharam. O tio Otávio pôs uma mão tesa na testa e diminuiu os olhos, para ver melhor. O avião ia como fosse desenhando montanhas no ar. Voou sobre o pasto de bezerros, o corregozinho da divisa, o morro da usina, o pinheiro. Eu bati palmas pulando. Senti meus cabelos lisos me batendo a testa. Os olhos do tio Otávio também brilhavam. Voou sobre o campinho, a pedra da curva, as laranjeiras. O Jaú deixou as galinhas e pulou tentando alcançar o aviãozinho. Não conseguiu. No pulo esquisito atrapalhou-se e quase caiu. O padrinho Braz sorriu. Cachorro bobo, ainda disse. O tio Otávio também bateu palmas. Sorria e sorria. O aviãozinho seguiu, embora já perdesse forças. Foi pousar mansamente no jardim de roseirinhas da madrinha, assustando uma corruíra que fazia ninho por ali. Duvido que algum outro formulário do censo de 1970 tenha sido mais bem utilizado.

2 comentários:

  1. Me fez lembrar o cotidiano do interior. Anos que não ouço ou vejo a palavra "embornal". muito bom

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