sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Política em Terra Viciada

O papai entrou na política por amor. Amor às pessoas, a sua terra. A vontade de ajudar. Era vocação, não ambição. Tornou-se vereador num tempo em que o cargo não dava um centavo sequer. Pelo contrário: a prefeitura era pobre de tudo, e muitas vezes os próprios vereadores faziam vaquinha para atender uma necessidade, resolver um aperto, comprar o que fosse preciso para alguém.

Tempos depois, mudou-se a regra. Passaram a receber um valor apenas nos dias de reunião, o equivalente ao que custaria contratar alguém para trabalhar na roça enquanto o vereador estava na Câmara. E assim o papel ganhou, pela primeira vez, algum pagamento simbólico. Papai foi vereador por três mandatos, e por dois deles presidiu a Câmara. Tinha esse dom de resolver problema comunitário, de ser ponte entre a necessidade e a solução. Mas, como ele mesmo dizia, a maior bobagem que fez foi se candidatar a prefeito.

Ele não se encaixava no perfil que a população esperava. Porque, embora falem muito mal dos políticos, poucos percebem que o político é como uma planta que cresce no tipo de solo que o alimenta. E o solo, ali, tinha suas próprias marcas: a população também é “interesseira”, pouco afeita ao senso coletivo. Muitos buscavam vantagem pessoal, não apenas a melhora natural que se espera de uma boa administração, mas favores diretos: um emprego para si ou para o filho, um dinheiro extra disfarçado de ajuda para reformar a casa, ou até para visitar um parente distante.

E papai não era desse tipo. Um dia, alguém disse abertamente a ele (e não é exemplo inventado, é fato) que por isso ele não ganharia. Que não queria “abrir a carteira”. Papai não estava disposto a jogar esse jogo. Não era pão-durismo, era princípio. Ele não via a política como um campo para apostar muito dinheiro e colher muito mais. Ao contrário: para ele, entrar na política era abrir mão de cuidar das próprias coisas para cuidar da coisa pública. Era até capaz de sair mais pobre do que entrou.

Ele queria fazer algo diferente, de coração aberto. Cuidar da coisa pública como quem cuida de uma roça, plantando com paciência e acreditando que, no tempo certo, viria o fruto, e que esse fruto seria coletivo. Não pensava no agora, nem no que poderia ganhar pessoalmente. E falo de salário, pois ganhar “por fora” era fora de cogitação para seu perfil impoluto e sério, embora as oportunidades para isso sejam muitas para quem administra a coisa pública.

Mas a lógica de muita gente era outra: pensavam que, se ele estava entrando, ficaria rico, e que essa era também a chance deles de “ganhar uma coisinha”, de aproveitar a hora em que o candidato vinha pedir o voto. Não percebiam que, vez ou outra, surgem políticos com intenções verdadeiramente diferentes. Só que, para enxergá-los, seria preciso que o coração da população estivesse voltado para outro tipo de valor. E ali, infelizmente, muitos estavam com o coração voltado para outras coisas.

As pessoas, sem entendimento, não percebem quando chega alguém diferente. É como se houvesse uma maldadezinha no olhar, um filtro que faz enxergar tudo pela maldade da política. E é nessa terra viciada que germinam os maus políticos: aqueles que fazem promessas, dão benefícios pessoais, desviam a coisa pública para fins particulares, seja para o eleitor, seja para si mesmos.

O papai não foi compreendido. Como ele, há muitos. Entrou na política na década de 90 e perdeu. Depois, na eleição seguinte, entrou de novo, atiçado por uns, e perdeu outra vez. Da mesma forma, entrou com as melhores intenções. Entendeu que o povo podia ter amadurecido desde os quatro antos da outra eleição. Mas a maioria seguiu sem entender a proposta dele. Claro que houve quem entendesse, sim, afinal, recebeu muitos votos. Mas falo da maioria. E essa maioria, além de não compreender, ainda no dia da eleição e posteriores, ao ver que papai, provocavam. “Caçoavam”, com dizem lá. Houve quem tivesse tempo e capacidade de ir até a nossa roça, para, de longe, escondidos nos pontos mais altos, soltar foguete para provocá-lo, como se quisessem feri-lo.

Ele sorria, não de deboche, mas, da incompreensão deles. No fundo isso doía, porque ele fez campanha limpa. Não afrontou ninguém, não provocou ninguém para merecer tal tratamento.

Dias atrás ainda perguntei: “Se fosse para fazer tudo de novo, o senhor faria?” Ele pensou e respondeu: “Ah, não sei, não. Para prefeito, eu não entrava.” Essa lembrança deixou nele um certo arrependimento. Porque a política, para quem entra com o coração limpo, não é nada fácil.

Às vezes, meus conterrâneos brincam comigo, sugerindo que eu entre para a política em Consolação. Seria um bis in idem: comigo aconteceria o mesmo que aconteceu com o papai, porque sou exatamente como ele. Entraria de coração puro, cheio de boas intenções, disposto a colocar toda a minha criatividade e capacidade inventiva para buscar soluções coletivas, administrando como se o todo fosse uma única coisa, sem dividir entre quem votou em mim e quem votou no outro.

Mas, com o papai, já vimos que isso não deu certo. Esse foi o arrependimento da vida dele e eu não quero que seja o da minha. Por isso, fico quieto, de fora. É uma pena, porque às vezes sinto o chamado, como ele sentiu. Sinto a vocação. Mas, enfim, as pessoas estão querendo outro tipo de política. Que essa coisa, então, fique fora da minha vida.

terça-feira, 24 de junho de 2025

A Percepção e o Pensamento

Perceber é ver.
Nu.
Claro.
Antes que o nome surja,
antes que a mente diga: “árvore”, “dor”, “ela”.

Perceber é o instante virgem
em que o mundo toca o coração
sem atravessar o filtro da memória.

Pensar é o eco —
um espelho que nunca reflete o agora,
mas o que já foi, o que se teme, o que se deseja.

O pensamento vem com seus trajes velhos,
seus rótulos gastos,
suas histórias de mil vidas atrás.

Ele diz:
“Isso é bom.”
“Isso é ruim.”
“Isso sou eu.”
“Isso não devo.”

Mas a percepção não diz.
Ela é.
Silenciosa. Presente. Inteira.

A folha dança no vento
e não precisa ser chamada “folha”
para ser beleza.

O choro vem —
e não é “tristeza”, nem “fraqueza”.
É apenas o sal da alma
dissolvendo muros antigos.

Perceber é morrer para o passado.
Pensar é tentar manter-se nele.

Mas quando há apenas percepção,
sem nome, sem fuga,
sem o véu do tempo —

então…
há liberdade.

quinta-feira, 29 de maio de 2025

PAI-OCEANO

 

Um peixinho ouviu, certa vez, de seu avô
que o oceano fizera tudo, num ato de amor.
Tudo vinha do pai-oceano. O fundo, a maré,
Fizera tudo em sete dias, com justeza e fé.

Ouviu que o oceano era fonte e abrigo,
e que um dia, ao morrer, seria contigo.
Seria um com o ele, profundo e sereno,
num lugar encantado, eterno, ameno.

O peixinho passou a orar, peito aberto,
pelo pai invisível, imenso, encoberto.
Vivia na graça, nadava feliz, fazia o bem,
por amor aquele mistério místico e além.

Mas risos surgiram, vozes de escárnio:
“Peixinho, não sonha! Isso é imaginário.
Oceano é invenção dos velhos, fábula vã,
o que existe é só água, algas e grão.”

Ele nem ouvia, seguia, notando o azul:
De onde viria aquela dança tão sutil?
Quem lhe deu o que sempre precisou?
Senão o oceano, o pai que a tudo criou?

A espera do grande dia ia-se os anos
Encontrar o peixe-pai de nome oceano
Não queria provar, nem convencer,
só queria um dia entender e ver.

E quando, enfim, findou sua jornada,
sua nadadeira cansada, calada,
dizem que foi, num brilho profundo,
mergulhar no ventre do mar sem fundo.

E descobriu, sem dor, sem engano,
que sempre nadara...
dentro do pai Oceano.

sexta-feira, 16 de maio de 2025

sol tangerina

Minha mãe me pediu, era bem cedinho.
Meu filho, vá na casa do Candiquinho
Soube que já tem, busque tangerinas.
Dizem que os pés estão carregadinhos
 

Ela bordava, em ponto corrido 
num pano teso no bastidor antigo 
Um menino correndo ladeira abaixo 
debaixo de um sol grande e vermelho
 
Parti pela estrada dos meus verdes dias
Meus pés gostavam da terra fria
Marcavam o úmido pela chuva de ontem
como quem assinava a infância 
 
O Tio Lauro apareceu na sua mula. 
Te cuida menino, viram onça no altão. 
Vi a cartucheira no arreio da mula.
As palavras de tio foram-me trovão. 
 
Em coragem miúda, busquei a volta
soltei três pedrinhas no bolso
no caso de precisão, combinariam
com meu estilingue no pescoço
 
Minha mãe me pediu, 
minha mãe me pediu… 
Repeti, repeti, como reza, 
como feitiço contra o medo. 
 
Corri pra chegar logo no Candiquinho
Logo atravessou-me uma claridade absurda
Senti-me o menino do bordado de mamãe,
Morro a baixo e debaixo do sol tangerina
 
A frase “minha mãe me pediu” derreteu-se
E medo algum cabia mais na cabeça minha
a leveza do meu corpo era quase de flutuar
debaixo daquele sol tangerina
 
Eu corria e o vento corria comigo
Saudei os canários e os pintassilgos
como gotas de luz dependurados
nos pés de capins dourados
 
pássaros-pretos em aberta revoada
pros lados da casa da madrinha
Pareciam atravessados 
da mesma claridade minha
 
Ah, como são limpos os meninos.
Por enfeite, estilingue no pescoço
Nos olhos a Centelha dos Céus
sem saber, o Paraíso no bolso

quarta-feira, 14 de maio de 2025

Vereda em Oração

Pondera a vereda de teus pés, 
não pises no mundo como quem dorme 
ouve o chão, pois ele fala, 
e a trilha responde ao que tu és.
 

Cada passo é um voto silencioso 
no rumo que teu ser escolhe ser; 
não há caminho que brote à toa, 
há um destino em cada mover.
 
Cuida bem de tua marcha, 
aquieta o ímpeto de ir por ir; 
sê como rio que curva e canta, 
mas nunca deixa de seguir.
 
Que teus pés saibam onde pisam, 
e tua alma, onde quer chegar; 
os caminhos se fazem claros 
quando o coração sabe esperar.
 
Vereda é verbo em oração, 
um traço sagrado do caminhar. 
Ordena teus dias como quem planta 
e deixa o céu o fruto dar.
 
Baseado no Provérbio 4:26: "Pondera a vereda de teus pés, e todos os teus caminhos sejam retos."
 
D. Kirk 14/05/2025

segunda-feira, 14 de abril de 2025

Compreensão do indizível

Às vezes estamos ali, 
no silêncio bom das coisas que não pedem nome, 
em comunhão com o que pulsa sem forma — 
um sentimento que não se anuncia, 
mas habita.
 
A brisa toca leve a pele da alma, 
e estamos com o vento, 
com o instante, 
com o voo dos que não pensam em cair.
 
Então alguém diz: 
“Fale-me sobre isso.” 
E tudo escorrega.
 
O que era leveza se enrijece. 
Tentamos moldar o que só existe porque flui. 
Empedramos o vento. 
Fazemos estátua do orvalho. 
Colhemos o perfume da flor e o prendemos 
num frasco sem jardim.
 
Há um pássaro no peitoril. 
Estamos tão perto — 
atrás da cortina tênue que nos separa. 
Vê-lo é ser parte. 
Mas ao tocar o pano, 
ao buscar a palavra, 
o pássaro se assusta. 
Foge. 
E só sobra a lembrança dura do que era voo.
 
Assim é tentar dizer o indizível. 
A palavra chega tarde, 
ou chega demais. 
E o que era comunhão vira relato. 
O que era dança vira desenho.
 
Porque estar junto do mundo, 
de verdade, 
não combina com explicar. 
Combina com estar. 
Só estar. 
Como quem respira. 
Como quem ama. 
Sem precisar dizer.

Partir


Toda palavra nos ergue uma imagem
com certo gosto e sensação
como se o som das sílabas
pintassem quadro vivo em nós
“Partir” carrega o peso do adeus
o estilhaço dos começos
Parti há tempos de minha cidade
mas nunca por inteiro
Partir traz sensação de dividir
Rachar-se em margens
um pouco vai
um pouco fica
o resto se perde no caminho
mãos se afastando devagar
lembrança que pulsa em becos
saudade que mora no olhar
Um pouco meu ainda mora lá
nas calçadas antigas
no cheiro de chuva na terra molhada
no silêncio das janelas fechadas
O que partiu de mim
nunca voltou ao mesmo lugar
Porque partir também é plantar
raízes no desconhecido
sem jamais ter deixado por completo
nem pertencido por inteiro, sigo
Partir (-se) é forma de permanecer (-se)
Assim sigo trincado

quarta-feira, 26 de março de 2025

FASTÍGIO

o tempo
tenta compreender 
o novo

pensamento

o morto
busca 
o vivo

imagem
de outra
imagem

miragem

distância
entre duas
pontas

abismo

o menor
caminho

sorriso

o deserto
resiste

re-sente

no pulso
vivo

paraíso

sexta-feira, 7 de março de 2025

Ausências

A tardinha se deita em luz mole, 
um amarelo cansado nos morros, 
os ventos descascam silêncios, 
e uma mulher esconde o olhar. 
 
Lá longe, os pássaros pretos 
contam segredos em asas roucas, 
bordam o céu com suas dúvidas 
e somem sem deixar pegadas. 
 
Na varanda a mulher calada, 
suas mãos seguram ausências, 
o peito com jeito de nuvem 
carrega um peso de nada. 
 
A tristeza pinga miúda, 
como um resto de sol nos vidros, 
e a tarde vai se apagando sozinha, 
sem ninguém pra segurar. 

quarta-feira, 5 de março de 2025

A INFÂNCIA É DOCE

1parte
vi papai no cavalo estrelo
vinha na curva lá embaixo
gritei mãe vem cá vê-lo
olha papai já vem chegando
 
então logo se banhe
mamãe gritou já escurecia
sem banho eu não teria
das balas que papai trazia
 
lá fui corri para dentro
pra traz bois de sabugo
saltei lufadas de vento
assustei o cãozinho peludo
 
refrão
 
a infância é doce
doce como bala
a criança é pura
ela não compara
 
É página limpa
Só nos cabe amá-la
a infância é doce
Doce como bala 2x
Como bala
 
2parte
 
papai chegou com história
lá da venda do Vardinho
que pras bandas do Olaria
onça rasgou bezerrinho
 
medo frio me arranhou costelas
lá fora noitinha já chegada
Mamãe correu cerrar janelas
girou firme as taramelas
 
com papai me vi seguro
na lamparina fogo vermelho
pena do cãozinho lá no escuro
sem balas sem pais pra protegê-lo
 
refrão...


quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

O Menino Velho

O menino velho ronda-me  
com seu olhar de mármore 
Denuncia grita e insinua  
coisas do seu tempo 
 
Como de sapatos pela primeira  
vez vou como posso 
Achando que tudo é velho 

Alguém me diz que tudo
é quase vazio
eu não acredito 
 
Sigo sabendo pouco mas  
supondo saber muito  

Acho que sou muito  
quando tenho que achar 
Que sou pouco 
Acho que sou pouco 
Onde tenho que achar 
Que sou muito    
 
Assim vou 
Dando ouvidos ao
velho menino 
Com olhar de pedra 

quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

EXPERIÊNCIA PEREGRINA

DA ENTRADA:

Como sempre faço, levei um caderninho para apontamentos vários dos meus desvarios durante a aventura. Mas essa Caminhada Peregrina sobreveio mesmo foi de implodir cascas, lançando silhuetas de suspense, drama, ação, comédia, ficção, aventura, romance. Enfim, sobrou penoso encontrar liga para um texto minimamente uno. Mas, por fim, busco derreter o que posso no fogo da emoção e encher umas forminhas de palavras, para enfileirá-las um escrito minimamente palatável que expresse algum juízo do que nos veio. Gosto de anotar de jeito livre, depois empenho as ideias mais vivas numa armação minimamente elegante. Mas aqui não alcancei bom êxito. Reduzi o que pude; mas ainda o texto vai bem extenso e bastante sem-pé-nem-cabeça. Não vou achando jeito de pentear e desbastar mais, então por hora solto-o como está.

DAS HORAS QUE ANTECEDERAM:

23/01/25 - 02:46:51. Um trovão rasga a madrugada. Faz tremer a terra como soltassem um caminhão de pedras na rua. 02:46:51 se somarmos alcançamos 666, número blasfemo que dizem de mau agouro. A seguir, um vento uivante entrou a empurrar tudo lá fora, como uma besta solta derrubasse o que lhe viesse a diante. Não demorou e os galos entraram a bramir. Não digo cantar, como usualmente dizemos. Parecia cair algo de apreensão no grasnar deles. Soube depois que nenhum dos companheiros peregrinos dormiu minimamente bem naquela noite.

ENFIM O PASSO UM:

“E vamos nós”, alguém disse. A noite ainda resistia naquela parte de mundo quando partíamos, após a oração. Partíamos de Paraisópolis, que os locais chamam de Paraíso. O “e vamos nós...” sobrou ecoando em minha mente por um tempo. “EVA mos nós...” virou Eva em minha fantasia. Associei a Eva deixando o paraíso, após seduzida pela serpente. Não demorou é um brado cortou o vale, num eco serpenteante. Era a Susi que se deparava com uma cobra. O grito vinha do horror do cenho espremido em asco.

DAS HISTÓRIAS:

Enfim, a caminhada enquadrou quatro dias de nossas vidas. Tantas experiências nos vieram nesse pequeno tempo. Como a natureza nos foi camarada. Trincou uma brecha no período chuvoso para que pudéssemos concluir bem nosso intento. As histórias vieram aos borbotões. Bem caberiam em páginas suficientes para um livro. Mas nosso propósito cá é outro. Começou com o Eduardo e seu tênis caro, adquirido no Chile numa região da base de um famoso vulcão. Já nas primeiras horas seus pés entraram a arder como repisassem da lava do vulcão. A criatura não treinou com o tênis antes. Logo ia calçado com o chinelão de dedos do Michender, e logo depois, ainda, descalço. Uns ciclistas que vinham em sentido oposto falavam em dinheiro. O Eduardo, muito entrão, comentou que dinheiro é importante. Que eles poderiam comprar um... falou lá de uma peça importante e cara de bicicleta. Um dos ciclistas então observou: verdade. E o senhor poderia comprar um tênis para caminhar. Risos. Importante é que o Eduardo, mesmo com tal limitação, mesmo com os pés esfolados, venceu a caminhada com alegria e fé.

O Guto por fim movimentava-se mais pela fé, já que o físico nalgum ponto lhe limitava. Alguma engrenagenzinha de um pé seu não apreciou a caminhada, daí resolveu tocar contra. Mas ele seguiu, brigando com ela, usando o cajado como um remo pelo estrada. Ele brilhou o tempo uma determinação viva e bonita no olhar. O Tio Paulo foi deixando sementes de pau-brasil plantadas pelo caminho. Se nascer uma, já me dou por satisfeito, dizia. Ele andou bem, com seu tênis escalpo, sem a parte da frente, de jeito que os dedos iam livres como dentro de chinelos. O Waldemir, muito amigo de todos, ia cheio de cuidados com a esposa e principalmente com o tio, ombro com ombro com ele por toda a viagem. É que a esposa Bel as vezes se desviava um pouco. Parecia um beija-flor, flutuando, flutuando, com leveza, para cá e para lá, saltitante, (até humilhando nós tão cansados) “beijando” cada placa no caminho com fotos e poses. A Susi, coitada, com os gansos brancos lhes vindo a direção, pescoçando, pescoçando... ao ouvir o Luiz gritar: corre, Susi. A coitada gemeu: Que jeito! As forças lhe vinham mínimas...

O Evandro mostrou-se um jovem “descolado”. Senti que traz mais boas energias e repertórios para se livrar dos truques da mente (a serpente) do que supõe. Sempre muito alegre e pronto para servir. Sofreu um pouco pelos companheiros de quarto. Era o quarto dos solteiros... O Eduardo falava, falava... Daí dormia. Então o Evandro pensava, ufa! Até que enfim. Que naaada! O Eduardo seguia falando, agora dormindo. Risos. E teve também o caso do Guto Pavarote, que roncava como executasse ópera. Às vezes parecia roncar até em línguas.

O Luizinho, o idealizador e planejador da viagem, vinha com mentira atrás de mentira com seu “é logo ali”, “é atrás daquela curva”, “é depois daquela reta”. Mas sobrava aí carinho. Agia assim para nos proteger o ânimo. Se soltasse a verdade, quem sabe fosse muito desanimador para nós. Mas a mentiradas foram demais mesmo. Dizem que a Susi até se afastou para chorar, tamanha cólera das prosas tortas do marido. Risos. Ah! Tenho tanta estima por essa prima Susi...

A Luciana, mesmo bastante cansada, trazia sorriso sempre aberto no rosto. É bonito isso, de sempre sorrir. É um dos motivos que a admiro tanto. Quando caminhava “mais ou menos” sozinha, ia puxando as contas de um terço, movimentando a boca em reza de um jeito a fazer lembrar a minha querida avó Dita. Num dos momentos em que avancei um pouco em relação a ela (porque sou muito grude e então buscava lhe dar algum descanso de mim) desenhei na estrada um coração grande. Ao centro lancei: LU. Desenhei flores ao redor. Pois bem, o Eduardo, muito ciumento, risos, fez o L transformar-se em D. Daí ficou DU no centro do coração. Risos de novo. Quando nos juntamos, passos à frente, perguntei à Lu: agradou-se do coraçãozinho que lhe fiz? Ela respondeu: para mimmmm... sei!!! Fez para o Eduardo, né. Tem base!

A Célia conversava de jeito delicado e agradável, trazendo gostosas façanhas de outros tempos e histórias dos sítios das irmãs. Ela chorou de rir quando contei uma história inventada (minha especialidade. Risos), que alguém em sentido contrário nos advertiu que ficássemos atentos, que um doidão ia logo a nossa frente, andando sozinho, brigando com o vento. Andava, girava, parava, abanava as mãos, parece que com raiva macetando o chão com um porrete, pés descalços. Era sobre nosso amigo Eduardo. Risos.


Ela sobrou incomodada, e talvez até brava, risos, apenas quando saímos da Trutaria Bela Vista. Andávamos, andávamos e o querido dela, o Milton, não nos passava na condução do veículo de apoio. Ela já entrou a supor coisas, como ele haver pegado no sono. Lançaram até que o viram de prosa e todo risonho com umas moças que chegavam. De repente, eis que o carro surgiu a nossa frente, porta-malas abertos, recheado de água gelada e frutas para nós. Ela suspirou, piscou mole. Seus olhos brilharam como emitissem os primeiros raios da manhã. Ela ganhou alma nova. Como chegou aqui? Ela gritou. Calmamente o Milton explicou que dois caminhos ligam a Trutaria à estrada principal. Vocês vieram por um; eu por outro. Alcancei a estrada principal antes de vocês.

A comadre Izabel, olhando-me nos olhos, toda emocionada, começou a recitar uma oração. Sobrei encabulado. Ler ela não lia. Pensei que fosse caso de coisa decorada. Mas daí pensei, se fosse algo guardado na memória não viria com aquela emoção nova. Depois soube que ela lia, numa daquelas tantas placas do caminho, fixadas em cercas e árvores. Erguia-se bem atrás de mim, ao alcance das vistas dela. “Senhor... me ensina a esperar pelo teu tempo. Segura firme minha mão e aumenta minhas forças na caminhada da vida. Me conduz pelo melhor caminho guiando meus passos. Me protege de todo mal. Aumenta minha fé e renova cada dia a minha confiança em Ti.”

O Michender não falou muito; foi exemplo e inspiração de determinação e foco. Transbordou generosidade. Seja arranjando medicamentos para muitos, seja oferecendo seu par de chinelos único ao Eduardo. Ele me confidenciou que vinha certo de que não alcançaria completar a caminhada apenas se valendo do tênis. Contudo conseguiu, já que seus chinelos iam a serviço dos pés do Eduardo. Ele e a Fabiana formaram o casal mais unido do grupo. Seguiram juntinhos pelo caminho o tempo todo, do começo ao fim, um cuidando do outro, com curativos, carinhos e tudo mais.

A Fabiana gargalhou do meu jeito abobalhado ao dizer, sobre algo meio sem–noção que fiz, que “nois da roça não tamo nem aí”. Realmente busco ser simples, mesmo que arrisque passar por mocorongo. O simples não quer muita coisa. Não busca provar. Não chama a atenção. Daí não procuram lhe puxar as escoras. Não gera inveja. Vive despercebido e em paz. Feliz, no seu mundinho, com repertórios mais factíveis para se livrar das encrencas que a serpente lhe apresenta. Na Bíblia temos que, nessa caminhada a qual chamamos vida, Deus oculta o que mais nos importa dos sábios e entendidos e revela aos simples.

A subida de Luminosa caiu-nos qual um calvário-mor. Com rostos desmanchados mal-e-mal nos arrastávamos, pelos tantos quilômetros abaixo de um sol aceso a potência máxima. O socorro vinha do Milton, com seu de carro de apoio. Era um alento, um oásis de água e frutas. Como ter tanta paciência, Milton? Alguém perguntou. É só ter paciência, ele respondeu. Ou seja, paciência não deve estar na pergunta; mas sim na resposta. E “ter” não no sentido de possuir a paciência, como qualquer algo já alcançado; mas sim “ter” no sentido de buscar, perseguir... praticar. Talvez isto represente melhor o caso: para se ter paciência, deve-se praticar a paciência.

Por fim nos veio também aquele lance na derradeira oração em grupo. O Eduardo finalmente pediu a palavra. Nisso todos vinham emocionados, fadigados, no limite físico. As meninas já chorando. O Dudu limpou a garganta e soltou: gente! Eu queria saber como aquele peru foi parar na ponta da árvore. Ele indicou com a cabeça a direção. A turma explodiu em gargalhada. É caixa de marimbondo, alguém arriscou. Mas caixa de marimbondo não se mexe, pontuou o Eduardo. Era lá um dos faisões da dona da pousada...

DE EVA A MARIA

Adão dorme
Tem uma costela quebrada
Desperta-se Eva
Deixa o estado de Paraíso
É Eva seduzida pela serpente
Que vê o mundo em dualidade
Mundo do bem e do mal
É Eva que se esconde de Deus
Que pari com dor
Que vê um filho seu matar o outro
Que realiza a percepção de que a vida
É caminhada custosa e difícil
Pingada pela morte ao final
A redenção vem com Maria
Maria que não conhece a serpente
Maria tem o Cristo nascendo de si
Aquele que é o que sempre foi e será
Aquele que não morre
Aquele que não tem seus ossos quebrados
Nosso propósito no caminho
Nesse tempo de ilusão chamado vida
Nesse tempo fora do Paraíso enquanto dormimos
É sermos cada dia menos Eva
Aquela que se esconde de Deus
E mais Maria, da qual nasce o bebê Cristo
O qual cuidado por nós
Crescerá amadurecerá
Conduzira-nos à transparência
Até que o Adão que somos se desperte
Retornaremos ao Paraíso
Em êxtase, recebidos pelo Pai
O brilho Eu Sou refulgirá por meio de nós
Saberemos que verdadeiramente desde sempre
Ele está no meio de nós

DO ARREMATE:

Enfim, em nossa aventura sobrou subidas, descidas, risos, escorregões, arranhões, bolhas. Mas também cantar de passarinhos, lindas alvoradas e tantas risadas. Veio igualmente doação, gratidão, generosidade, amizade. Jamais nos sentimos sozinhos. Houve muito acolhimento pelo caminho. Seguimos impulsionados por certa Força Mágica que não temos como explicar. Como nos sussurrassem aos ouvidos: vai... vai... vai... vai... vai... vai... vai... vai...

Um lado nosso mirava a meta. Outro, nos lançava o quanto já havíamos vencido. Um lado dizia, vocês estão loucos. Como andar mais de 30km por dia. É impossível. Outro, parem de pensar. Sigam. Entreguem-se. O escuro desescurecia-se. Curava. Avermelhava-se. Clareava. Um fiapo de brilho infiltrava-se nalguma mínima frincha. Irradiava-se leve, fluído, vivo. A noite defunta recolhia-se. Despertávamos novos. Crescia o sol colorido ligando os passarinhos e pondo viço em tudo. A vida fervilhava. A aragem da manhã nos trazia o perfume das flores das montanhas. O orvalho ainda brilhava. Seguíamos nos movimentando, jogando um pé adiante do outro, como ouvíssemos o cochicho da brisa que mansamente ramalhava os galhos dos pinheiros: vai... vai... vai... vai... vai... vai... vai... vai... vocês vão conseguir.

Quem vinha apreensivo em 23/01, vinha com seu modo Eva ativado. Fora da Paz de Cristo. Fora do “Reino”. Crendo nas coisas “deste mundo”. A imaginação... a sombra... a serpente... A mente que mente. A mente da morte. A mágica do caminho, a outra noção de tempo, o ir se livrando das cascas, foram nos tornando menos Eva e mais Maria, por meio da qual a Luz é. As 11:02:04 consultei meu relógio, já no pátio do Santuário. Se somarmos 11:02:04 achamos o 7, número da Perfeição que é. Sermos menos Eva e mais Maria, apenas com a prática paciência, a ciência da paz, a ciência do amor, que o Milton nos trouxe. Deixo cá minha gratidão aos 13 companheiros de peregrinação. Temos certo pacto agora. Até a próxima meus irmãos.