DA ENTRADA:
Como sempre faço, levei um caderninho para apontamentos vários dos meus desvarios durante a aventura. Mas essa Caminhada Peregrina sobreveio mesmo foi de implodir cascas, lançando silhuetas de suspense, drama, ação, comédia, ficção, aventura, romance. Enfim, sobrou penoso encontrar liga para um texto minimamente uno. Mas, por fim, busco derreter o que posso no fogo da emoção e encher umas forminhas de palavras, para enfileirá-las um escrito minimamente palatável que expresse algum juízo do que nos veio. Gosto de anotar de jeito livre, depois empenho as ideias mais vivas numa armação minimamente elegante. Mas aqui não alcancei bom êxito. Reduzi o que pude; mas ainda o texto vai bem extenso e bastante sem-pé-nem-cabeça. Não vou achando jeito de pentear e desbastar mais, então por hora solto-o como está.
DAS HORAS QUE ANTECEDERAM:
23/01/25 - 02:46:51. Um trovão rasga a madrugada. Faz tremer a terra como soltassem um caminhão de pedras na rua. 02:46:51 se somarmos alcançamos 666, número blasfemo que dizem de mau agouro. A seguir, um vento uivante entrou a empurrar tudo lá fora, como uma besta solta derrubasse o que lhe viesse a diante. Não demorou e os galos entraram a bramir. Não digo cantar, como usualmente dizemos. Parecia cair algo de apreensão no grasnar deles. Soube depois que nenhum dos companheiros peregrinos dormiu minimamente bem naquela noite.
ENFIM O PASSO UM:
“E vamos nós”, alguém disse. A noite ainda resistia naquela parte de mundo quando partíamos, após a oração. Partíamos de Paraisópolis, que os locais chamam de Paraíso. O “e vamos nós...” sobrou ecoando em minha mente por um tempo. “EVA mos nós...” virou Eva em minha fantasia. Associei a Eva deixando o paraíso, após seduzida pela serpente. Não demorou é um brado cortou o vale, num eco serpenteante. Era a Susi que se deparava com uma cobra. O grito vinha do horror do cenho espremido em asco.
DAS HISTÓRIAS:
Enfim, a caminhada enquadrou quatro dias de nossas vidas. Tantas experiências nos vieram nesse pequeno tempo. Como a natureza nos foi camarada. Trincou uma brecha no período chuvoso para que pudéssemos concluir bem nosso intento. As histórias vieram aos borbotões. Bem caberiam em páginas suficientes para um livro. Mas nosso propósito cá é outro. Começou com o Eduardo e seu tênis caro, adquirido no Chile numa região da base de um famoso vulcão. Já nas primeiras horas seus pés entraram a arder como repisassem da lava do vulcão. A criatura não treinou com o tênis antes. Logo ia calçado com o chinelão de dedos do Michender, e logo depois, ainda, descalço. Uns ciclistas que vinham em sentido oposto falavam em dinheiro. O Eduardo, muito entrão, comentou que dinheiro é importante. Que eles poderiam comprar um... falou lá de uma peça importante e cara de bicicleta. Um dos ciclistas então observou: verdade. E o senhor poderia comprar um tênis para caminhar. Risos. Importante é que o Eduardo, mesmo com tal limitação, mesmo com os pés esfolados, venceu a caminhada com alegria e fé.
O Guto por fim movimentava-se mais pela fé, já que o físico nalgum ponto lhe limitava. Alguma engrenagenzinha de um pé seu não apreciou a caminhada, daí resolveu tocar contra. Mas ele seguiu, brigando com ela, usando o cajado como um remo pelo estrada. Ele brilhou o tempo uma determinação viva e bonita no olhar. O Tio Paulo foi deixando sementes de pau-brasil plantadas pelo caminho. Se nascer uma, já me dou por satisfeito, dizia. Ele andou bem, com seu tênis escalpo, sem a parte da frente, de jeito que os dedos iam livres como dentro de chinelos. O Waldemir, muito amigo de todos, ia cheio de cuidados com a esposa e principalmente com o tio, ombro com ombro com ele por toda a viagem. É que a esposa Bel as vezes se desviava um pouco. Parecia um beija-flor, flutuando, flutuando, com leveza, para cá e para lá, saltitante, (até humilhando nós tão cansados) “beijando” cada placa no caminho com fotos e poses. A Susi, coitada, com os gansos brancos lhes vindo a direção, pescoçando, pescoçando... ao ouvir o Luiz gritar: corre, Susi. A coitada gemeu: Que jeito! As forças lhe vinham mínimas...
O Evandro mostrou-se um jovem “descolado”. Senti que traz mais boas energias e repertórios para se livrar dos truques da mente (a serpente) do que supõe. Sempre muito alegre e pronto para servir. Sofreu um pouco pelos companheiros de quarto. Era o quarto dos solteiros... O Eduardo falava, falava... Daí dormia. Então o Evandro pensava, ufa! Até que enfim. Que naaada! O Eduardo seguia falando, agora dormindo. Risos. E teve também o caso do Guto Pavarote, que roncava como executasse ópera. Às vezes parecia roncar até em línguas.
O Luizinho, o idealizador e planejador da viagem, vinha com mentira atrás de mentira com seu “é logo ali”, “é atrás daquela curva”, “é depois daquela reta”. Mas sobrava aí carinho. Agia assim para nos proteger o ânimo. Se soltasse a verdade, quem sabe fosse muito desanimador para nós. Mas a mentiradas foram demais mesmo. Dizem que a Susi até se afastou para chorar, tamanha cólera das prosas tortas do marido. Risos. Ah! Tenho tanta estima por essa prima Susi...
A Luciana, mesmo bastante cansada, trazia sorriso sempre aberto no rosto. É bonito isso, de sempre sorrir. É um dos motivos que a admiro tanto. Quando caminhava “mais ou menos” sozinha, ia puxando as contas de um terço, movimentando a boca em reza de um jeito a fazer lembrar a minha querida avó Dita. Num dos momentos em que avancei um pouco em relação a ela (porque sou muito grude e então buscava lhe dar algum descanso de mim) desenhei na estrada um coração grande. Ao centro lancei: LU. Desenhei flores ao redor. Pois bem, o Eduardo, muito ciumento, risos, fez o L transformar-se em D. Daí ficou DU no centro do coração. Risos de novo. Quando nos juntamos, passos à frente, perguntei à Lu: agradou-se do coraçãozinho que lhe fiz? Ela respondeu: para mimmmm... sei!!! Fez para o Eduardo, né. Tem base!
A Célia conversava de jeito delicado e agradável, trazendo gostosas façanhas de outros tempos e histórias dos sítios das irmãs. Ela chorou de rir quando contei uma história inventada (minha especialidade. Risos), que alguém em sentido contrário nos advertiu que ficássemos atentos, que um doidão ia logo a nossa frente, andando sozinho, brigando com o vento. Andava, girava, parava, abanava as mãos, parece que com raiva macetando o chão com um porrete, pés descalços. Era sobre nosso amigo Eduardo. Risos.
Ela sobrou incomodada, e talvez até brava, risos, apenas quando saímos da Trutaria Bela Vista. Andávamos, andávamos e o querido dela, o Milton, não nos passava na condução do veículo de apoio. Ela já entrou a supor coisas, como ele haver pegado no sono. Lançaram até que o viram de prosa e todo risonho com umas moças que chegavam. De repente, eis que o carro surgiu a nossa frente, porta-malas abertos, recheado de água gelada e frutas para nós. Ela suspirou, piscou mole. Seus olhos brilharam como emitissem os primeiros raios da manhã. Ela ganhou alma nova. Como chegou aqui? Ela gritou. Calmamente o Milton explicou que dois caminhos ligam a Trutaria à estrada principal. Vocês vieram por um; eu por outro. Alcancei a estrada principal antes de vocês.
A comadre Izabel, olhando-me nos olhos, toda emocionada, começou a recitar uma oração. Sobrei encabulado. Ler ela não lia. Pensei que fosse caso de coisa decorada. Mas daí pensei, se fosse algo guardado na memória não viria com aquela emoção nova. Depois soube que ela lia, numa daquelas tantas placas do caminho, fixadas em cercas e árvores. Erguia-se bem atrás de mim, ao alcance das vistas dela. “Senhor... me ensina a esperar pelo teu tempo. Segura firme minha mão e aumenta minhas forças na caminhada da vida. Me conduz pelo melhor caminho guiando meus passos. Me protege de todo mal. Aumenta minha fé e renova cada dia a minha confiança em Ti.”
O Michender não falou muito; foi exemplo e inspiração de determinação e foco. Transbordou generosidade. Seja arranjando medicamentos para muitos, seja oferecendo seu par de chinelos único ao Eduardo. Ele me confidenciou que vinha certo de que não alcançaria completar a caminhada apenas se valendo do tênis. Contudo conseguiu, já que seus chinelos iam a serviço dos pés do Eduardo. Ele e a Fabiana formaram o casal mais unido do grupo. Seguiram juntinhos pelo caminho o tempo todo, do começo ao fim, um cuidando do outro, com curativos, carinhos e tudo mais.
A Fabiana gargalhou do meu jeito abobalhado ao dizer, sobre algo meio sem–noção que fiz, que “nois da roça não tamo nem aí”. Realmente busco ser simples, mesmo que arrisque passar por mocorongo. O simples não quer muita coisa. Não busca provar. Não chama a atenção. Daí não procuram lhe puxar as escoras. Não gera inveja. Vive despercebido e em paz. Feliz, no seu mundinho, com repertórios mais factíveis para se livrar das encrencas que a serpente lhe apresenta. Na Bíblia temos que, nessa caminhada a qual chamamos vida, Deus oculta o que mais nos importa dos sábios e entendidos e revela aos simples.
A subida de Luminosa caiu-nos qual um calvário-mor. Com rostos desmanchados mal-e-mal nos arrastávamos, pelos tantos quilômetros abaixo de um sol aceso a potência máxima. O socorro vinha do Milton, com seu de carro de apoio. Era um alento, um oásis de água e frutas. Como ter tanta paciência, Milton? Alguém perguntou. É só ter paciência, ele respondeu. Ou seja, paciência não deve estar na pergunta; mas sim na resposta. E “ter” não no sentido de possuir a paciência, como qualquer algo já alcançado; mas sim “ter” no sentido de buscar, perseguir... praticar. Talvez isto represente melhor o caso: para se ter paciência, deve-se praticar a paciência.
Por fim nos veio também aquele lance na derradeira oração em grupo. O Eduardo finalmente pediu a palavra. Nisso todos vinham emocionados, fadigados, no limite físico. As meninas já chorando. O Dudu limpou a garganta e soltou: gente! Eu queria saber como aquele peru foi parar na ponta da árvore. Ele indicou com a cabeça a direção. A turma explodiu em gargalhada. É caixa de marimbondo, alguém arriscou. Mas caixa de marimbondo não se mexe, pontuou o Eduardo. Era lá um dos faisões da dona da pousada...
DE EVA A MARIA
Tem uma costela quebrada
Desperta-se Eva
Deixa o estado de Paraíso
É Eva seduzida pela serpente
Que vê o mundo em dualidade
Mundo do bem e do mal
É Eva que se esconde de Deus
Que pari com dor
Que vê um filho seu matar o outro
Que realiza a percepção de que a vida
É caminhada custosa e difícil
Pingada pela morte ao final
A redenção vem com Maria
Maria que não conhece a serpente
Maria tem o Cristo nascendo de si
Aquele que é o que sempre foi e será
Aquele que não morre
Aquele que não tem seus ossos quebrados
Nosso propósito no caminho
Nesse tempo de ilusão chamado vida
Nesse tempo fora do Paraíso enquanto dormimos
É sermos cada dia menos Eva
Aquela que se esconde de Deus
E mais Maria, da qual nasce o bebê Cristo
O qual cuidado por nós
Crescerá amadurecerá
Conduzira-nos à transparência
Até que o Adão que somos se desperte
Retornaremos ao Paraíso
Em êxtase, recebidos pelo Pai
O brilho Eu Sou refulgirá por meio de nós
Saberemos que verdadeiramente desde sempre
Ele está no meio de nós
DO ARREMATE:
Enfim, em nossa aventura sobrou subidas, descidas, risos, escorregões, arranhões, bolhas. Mas também cantar de passarinhos, lindas alvoradas e tantas risadas. Veio igualmente doação, gratidão, generosidade, amizade. Jamais nos sentimos sozinhos. Houve muito acolhimento pelo caminho. Seguimos impulsionados por certa Força Mágica que não temos como explicar. Como nos sussurrassem aos ouvidos: vai... vai... vai... vai... vai... vai... vai... vai...
Um lado nosso mirava a meta. Outro, nos lançava o quanto já havíamos vencido. Um lado dizia, vocês estão loucos. Como andar mais de 30km por dia. É impossível. Outro, parem de pensar. Sigam. Entreguem-se. O escuro desescurecia-se. Curava. Avermelhava-se. Clareava. Um fiapo de brilho infiltrava-se nalguma mínima frincha. Irradiava-se leve, fluído, vivo. A noite defunta recolhia-se. Despertávamos novos. Crescia o sol colorido ligando os passarinhos e pondo viço em tudo. A vida fervilhava. A aragem da manhã nos trazia o perfume das flores das montanhas. O orvalho ainda brilhava. Seguíamos nos movimentando, jogando um pé adiante do outro, como ouvíssemos o cochicho da brisa que mansamente ramalhava os galhos dos pinheiros: vai... vai... vai... vai... vai... vai... vai... vai... vocês vão conseguir.
Quem vinha apreensivo em 23/01, vinha com seu modo Eva ativado. Fora da Paz de Cristo. Fora do “Reino”. Crendo nas coisas “deste mundo”. A imaginação... a sombra... a serpente... A mente que mente. A mente da morte. A mágica do caminho, a outra noção de tempo, o ir se livrando das cascas, foram nos tornando menos Eva e mais Maria, por meio da qual a Luz é. As 11:02:04 consultei meu relógio, já no pátio do Santuário. Se somarmos 11:02:04 achamos o 7, número da Perfeição que é. Sermos menos Eva e mais Maria, apenas com a prática paciência, a ciência da paz, a ciência do amor, que o Milton nos trouxe. Deixo cá minha gratidão aos 13 companheiros de peregrinação. Temos certo pacto agora. Até a próxima meus irmãos.
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