terça-feira, 7 de janeiro de 2025

ME DEIXE AQUI

O cantor provoca o violão, como lhe arranjasse cócegas. "Meu amor / Deixa eu chorar até cansar / Me leve pra qualquer lugar / Aonde Deus possa me ouvir".  Num canto, a moça acompanha cantando, entre animada e emocionada. "Eu quero algo pra beber / Me deixe aqui, pode sair". Ela agita uma das mãos. A senhora olha aquilo, sorri. Os dentes-de-leão bordados na blusa dela parecem vibrar, como buscassem se por em dispersão.

Caconde já não é mais a mesma, diz o senhor. O outro não se esquece de certo acidente na represa, quando morreu um japonês. Ele acha que um tal Simão se salvou. Foi uma história muito é da mal contada, diz. Alguém se lembra da casa da mãe, com menos paredes... Uns meninos correm atrás de um grilo. A mãe diz que o pai deles não pode vir desta vez. A menina de língua azul pelo picolé, sorri. Corre até a piscina. Salta entre outras crianças felizes. Um rapaz olha as águas da represa rendadas ao vento como orasse. A moça que anda descalça parece flutuar. Movimenta-se como borboleta de flor em flor, numa espécie de dança.

Logo começam a rezar para que o menino acidentado continue se recuperando bem. A moça bonita chora, sentida. Quando cantam "derrama oh senhor, derrama oh senhor", um homem diz não gostar desse derrama-derrama, porque se lembra da mãe. Uma gota de lágrima escapa-lhe de um dos olhos. Corre quente pelo rosto. Ele a recolhe com as costas de uma das mãos. Muda de assunto.

Saudade há, sim, ali. Mas o que mais se nota são sorrisos. Tudo está como deveria estar. Uma forma maior se sacode. Espreme-se para se expressar. O hoje e o ontem são um, no murmurinho. Um encontro que abala mundos, pela entrega. Alguém diz que é tudo semente plantada pela Gélia. Quem chega mais tarde achega-se meio ressabiado, pela algazarra; mas num isso, zasss! Pisa na “água” e é sugado pela “correnteza” do Um, o Ser que sempre foi e sempre será; mas que para se experimentar, estar em relação, manifesta-se "como". Aparece como o senhor saudoso, o contador de histórias, a moça feliz, a emocionada, a criançada na piscina, os rapazes na lancha, as duas mulheres com panos de chita nas costas, os “Bastião” em dança no arremedo de folia de Reis. Tudo vários do mesmo Um.

O medo, a tristeza, a angústia são traços humanos que para serem experimentados impõem a existência de observador e observado. Ou seja, o homem em reflexão. Agora, se não há reflexão, se somos apenas o momento, integrados e em comunhão, entregues, estamos de volta ao Um, a unidade do Ser, num êxtase indizível que não nos cabe. Por isso tamanha alegria num encontro desses. Algo que transborda e embriaga e não queremos que acabe.

A estrada não tem fim. Uns saem; outros chegam. O Ser segue manifestando-se, expandindo-se, experimentando-se através dos diversos eus. Como sempre fez e sempre fará. Esvaziar-se cada um do seu eu individual para se encher do Eu coletivo é experimentar o Ser em cada sorriso, em cada abraço, em cada toque, em cada emoção. O Ser não apenas se satisfaz em conhecer a todos. Também quer que o conheçamos e experimentemos.

Quem tem coração manso que leia os sinais. A estrela brilhava no céu para todos. Mas apenas os Reis Magos perceberam. Souberam que o Amor se fez carne. Toda desordem nossa nos impele a um movimento em busca da ordem, a busca de algo que supostamente nos falta. Mas se na simplicidade já alcançamos o amor do Um, o que nos falta? precisamos de algo mais?

"Eu quero algo pra beber / Me deixe aqui, pode sair".

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