terça-feira, 24 de junho de 2025

A Percepção e o Pensamento

Perceber é ver.
Nu.
Claro.
Antes que o nome surja,
antes que a mente diga: “árvore”, “dor”, “ela”.

Perceber é o instante virgem
em que o mundo toca o coração
sem atravessar o filtro da memória.

Pensar é o eco —
um espelho que nunca reflete o agora,
mas o que já foi, o que se teme, o que se deseja.

O pensamento vem com seus trajes velhos,
seus rótulos gastos,
suas histórias de mil vidas atrás.

Ele diz:
“Isso é bom.”
“Isso é ruim.”
“Isso sou eu.”
“Isso não devo.”

Mas a percepção não diz.
Ela é.
Silenciosa. Presente. Inteira.

A folha dança no vento
e não precisa ser chamada “folha”
para ser beleza.

O choro vem —
e não é “tristeza”, nem “fraqueza”.
É apenas o sal da alma
dissolvendo muros antigos.

Perceber é morrer para o passado.
Pensar é tentar manter-se nele.

Mas quando há apenas percepção,
sem nome, sem fuga,
sem o véu do tempo —

então…
há liberdade.

quinta-feira, 29 de maio de 2025

PAI-OCEANO

 

Um peixinho ouviu, certa vez, de seu avô
que o oceano fizera tudo, num ato de amor.
Tudo vinha do pai-oceano. O fundo, a maré,
Fizera tudo em sete dias, com justeza e fé.

Ouviu que o oceano era fonte e abrigo,
e que um dia, ao morrer, seria contigo.
Seria um com o ele, profundo e sereno,
num lugar encantado, eterno, ameno.

O peixinho passou a orar, peito aberto,
pelo pai invisível, imenso, encoberto.
Vivia na graça, nadava feliz, fazia o bem,
por amor aquele mistério místico e além.

Mas risos surgiram, vozes de escárnio:
“Peixinho, não sonha! Isso é imaginário.
Oceano é invenção dos velhos, fábula vã,
o que existe é só água, algas e grão.”

Ele nem ouvia, seguia, notando o azul:
De onde viria aquela dança tão sutil?
Quem lhe deu o que sempre precisou?
Senão o oceano, o pai que a tudo criou?

A espera do grande dia ia-se os anos
Encontrar o peixe-pai de nome oceano
Não queria provar, nem convencer,
só queria um dia entender e ver.

E quando, enfim, findou sua jornada,
sua nadadeira cansada, calada,
dizem que foi, num brilho profundo,
mergulhar no ventre do mar sem fundo.

E descobriu, sem dor, sem engano,
que sempre nadara...
dentro do pai Oceano.

sexta-feira, 16 de maio de 2025

sol tangerina

Minha mãe me pediu, era bem cedinho.
Meu filho, vá na casa do Candiquinho
Soube que já tem, busque tangerinas.
Dizem que os pés estão carregadinhos
 

Ela bordava, em ponto corrido 
num pano teso no bastidor antigo 
Um menino correndo ladeira abaixo 
debaixo de um sol grande e vermelho
 
Parti pela estrada dos meus verdes dias
Meus pés gostavam da terra fria
Marcavam o úmido pela chuva de ontem
como quem assinava a infância 
 
O Tio Lauro apareceu na sua mula. 
Te cuida menino, viram onça no altão. 
Vi a cartucheira no arreio da mula.
As palavras de tio foram-me trovão. 
 
Em coragem miúda, busquei a volta
soltei três pedrinhas no bolso
no caso de precisão, combinariam
com meu estilingue no pescoço
 
Minha mãe me pediu, 
minha mãe me pediu… 
Repeti, repeti, como reza, 
como feitiço contra o medo. 
 
Corri pra chegar logo no Candiquinho
Logo atravessou-me uma claridade absurda
Senti-me o menino do bordado de mamãe,
Morro a baixo e debaixo do sol tangerina
 
A frase “minha mãe me pediu” derreteu-se
E medo algum cabia mais na cabeça minha
a leveza do meu corpo era quase de flutuar
debaixo daquele sol tangerina
 
Eu corria e o vento corria comigo
Saudei os canários e os pintassilgos
como gotas de luz dependurados
nos pés de capins dourados
 
pássaros-pretos em aberta revoada
pros lados da casa da madrinha
Pareciam atravessados 
da mesma claridade minha
 
Ah, como são limpos os meninos.
Por enfeite, estilingue no pescoço
Nos olhos a Centelha dos Céus
sem saber, o Paraíso no bolso

quarta-feira, 14 de maio de 2025

Vereda em Oração

Pondera a vereda de teus pés, 
não pises no mundo como quem dorme 
ouve o chão, pois ele fala, 
e a trilha responde ao que tu és.
 

Cada passo é um voto silencioso 
no rumo que teu ser escolhe ser; 
não há caminho que brote à toa, 
há um destino em cada mover.
 
Cuida bem de tua marcha, 
aquieta o ímpeto de ir por ir; 
sê como rio que curva e canta, 
mas nunca deixa de seguir.
 
Que teus pés saibam onde pisam, 
e tua alma, onde quer chegar; 
os caminhos se fazem claros 
quando o coração sabe esperar.
 
Vereda é verbo em oração, 
um traço sagrado do caminhar. 
Ordena teus dias como quem planta 
e deixa o céu o fruto dar.
 
Baseado no Provérbio 4:26: "Pondera a vereda de teus pés, e todos os teus caminhos sejam retos."
 
D. Kirk 14/05/2025

segunda-feira, 14 de abril de 2025

Compreensão do indizível

Às vezes estamos ali, 
no silêncio bom das coisas que não pedem nome, 
em comunhão com o que pulsa sem forma — 
um sentimento que não se anuncia, 
mas habita.
 
A brisa toca leve a pele da alma, 
e estamos com o vento, 
com o instante, 
com o voo dos que não pensam em cair.
 
Então alguém diz: 
“Fale-me sobre isso.” 
E tudo escorrega.
 
O que era leveza se enrijece. 
Tentamos moldar o que só existe porque flui. 
Empedramos o vento. 
Fazemos estátua do orvalho. 
Colhemos o perfume da flor e o prendemos 
num frasco sem jardim.
 
Há um pássaro no peitoril. 
Estamos tão perto — 
atrás da cortina tênue que nos separa. 
Vê-lo é ser parte. 
Mas ao tocar o pano, 
ao buscar a palavra, 
o pássaro se assusta. 
Foge. 
E só sobra a lembrança dura do que era voo.
 
Assim é tentar dizer o indizível. 
A palavra chega tarde, 
ou chega demais. 
E o que era comunhão vira relato. 
O que era dança vira desenho.
 
Porque estar junto do mundo, 
de verdade, 
não combina com explicar. 
Combina com estar. 
Só estar. 
Como quem respira. 
Como quem ama. 
Sem precisar dizer.

Partir


Toda palavra nos ergue uma imagem
com certo gosto e sensação
como se o som das sílabas
pintassem quadro vivo em nós
“Partir” carrega o peso do adeus
o estilhaço dos começos
Parti há tempos de minha cidade
mas nunca por inteiro
Partir traz sensação de dividir
Rachar-se em margens
um pouco vai
um pouco fica
o resto se perde no caminho
mãos se afastando devagar
lembrança que pulsa em becos
saudade que mora no olhar
Um pouco meu ainda mora lá
nas calçadas antigas
no cheiro de chuva na terra molhada
no silêncio das janelas fechadas
O que partiu de mim
nunca voltou ao mesmo lugar
Porque partir também é plantar
raízes no desconhecido
sem jamais ter deixado por completo
nem pertencido por inteiro, sigo
Partir (-se) é forma de permanecer (-se)
Assim sigo trincado

quarta-feira, 26 de março de 2025

FASTÍGIO

o tempo
tenta compreender 
o novo

pensamento

o morto
busca 
o vivo

imagem
de outra
imagem

miragem

distância
entre duas
pontas

abismo

o menor
caminho

sorriso

o deserto
resiste

re-sente

no pulso
vivo

paraíso

sexta-feira, 7 de março de 2025

Ausências

A tardinha se deita em luz mole, 
um amarelo cansado nos morros, 
os ventos descascam silêncios, 
e uma mulher esconde o olhar. 
 
Lá longe, os pássaros pretos 
contam segredos em asas roucas, 
bordam o céu com suas dúvidas 
e somem sem deixar pegadas. 
 
Na varanda a mulher calada, 
suas mãos seguram ausências, 
o peito com jeito de nuvem 
carrega um peso de nada. 
 
A tristeza pinga miúda, 
como um resto de sol nos vidros, 
e a tarde vai se apagando sozinha, 
sem ninguém pra segurar. 

quarta-feira, 5 de março de 2025

A INFÂNCIA É DOCE

1parte
vi papai no cavalo estrelo
vinha na curva lá embaixo
gritei mãe vem cá vê-lo
olha papai já vem chegando
 
então logo se banhe
mamãe gritou já escurecia
sem banho eu não teria
das balas que papai trazia
 
lá fui corri para dentro
pra traz bois de sabugo
saltei lufadas de vento
assustei o cãozinho peludo
 
refrão
 
a infância é doce
doce como bala
a criança é pura
ela não compara
 
É página limpa
Só nos cabe amá-la
a infância é doce
Doce como bala 2x
Como bala
 
2parte
 
papai chegou com história
lá da venda do Vardinho
que pras bandas do Olaria
onça rasgou bezerrinho
 
medo frio me arranhou costelas
lá fora noitinha já chegada
Mamãe correu cerrar janelas
girou firme as taramelas
 
com papai me vi seguro
na lamparina fogo vermelho
pena do cãozinho lá no escuro
sem balas sem pais pra protegê-lo
 
refrão...


quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

O Menino Velho

O menino velho ronda-me  
com seu olhar de mármore 
Denuncia grita e insinua  
coisas do seu tempo 
 
Como de sapatos pela primeira  
vez vou como posso 
Achando que tudo é velho 

Alguém me diz que tudo
é quase vazio
eu não acredito 
 
Sigo sabendo pouco mas  
supondo saber muito  

Acho que sou muito  
quando tenho que achar 
Que sou pouco 
Acho que sou pouco 
Onde tenho que achar 
Que sou muito    
 
Assim vou 
Dando ouvidos ao
velho menino 
Com olhar de pedra