sábado, 16 de janeiro de 2021

incompletude

 

Vivi a infância na Fazenda da Paz. Quem é da cidade, cidade grandona, digo, imagina a fazenda um lugar parado, quieto. Nada. A Fazenda da Paz era barulhenta. Os barulhos vinham da natureza, dos bichos domésticos, do rádio da minha mãe, da máquina de costura dela, dos carros de boi sempre passando na estrada. Também havia várias casas próximas da nossa. Todas de meus tios. Meu tio Dutra gostava de conversar com meu pai, as tardinhas. Sempre se assentavam a barranca, próxima do ipê amarelo. Falavam do tempo, das plantações, dos planos. Eu gostava de ficar a volta deles. Tudo que falavam, eu ia imaginando. Eu ia ouvindo aos pedaços o que diziam. Se o tio falava, vou plantar uma roça grande de milho. Eu desligava meu escutador. Ficava pensando quanto seria esse grande da roça. Imaginava o vento ondulando um milharal lindo. Aí já ouvia o tio dizer que viria muita chuva. Eu matutava quanto seria muita chuva. Seria enchente capaz de cobrir o varjão? Já pensava no arrozal que viria depois, no varjão. Até ouvia o alarido dos periquitos, bicando arroz. Dali a pouco o tio falava que o sujeito devia ser boa gente, que vinha de longe, muito longe. Longe, longe. Longe onde? Eu pensava. Decerto Pouso Alegre ou Itajubá, imaginava. Quando o sol já se aninhava quase tudo nas montanhas, o tio despedia-se. Eu falava, volta amanhã, tio Dutra. Ele sorria. Ele sempre voltava. Saudade da simplicidade daqueles dias. No que a gente não sabia, a gente completava com coisas boas, porque, quase tudo que nos vem é incompleto.



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