terça-feira, 14 de maio de 2024

vinde a nós

O dia novo chegou com naturalidade. Manso, cheio frescor. Umas nuvens ralas pareciam véus colados ao vítreo azul céu. Dizem que esse azul é ilusão. Que a luz solar ao atingir nosso ar dispersa suas cores e a cor melhor refletida seria o azul. Que não tem nada azul aí em cima, se formos olhar bem. Acho que não importa. O que parece valer é que vemos esse azul e nos maravilhamos com ele. Uns pintassilgos comiam sementes de capim dependurados nuns ramos dourados. Das chaminés tuchos de fumaças subiam em vórtice, em sinal de vida ali. Uns meninos já brincavam com uns filhotinhos de gato, num alarido efusivo de risadinhas. O hábito do sol novo já alcançava docemente aquele lugar cercado de montanhas arredondadas. Não obstante, formigas ainda conseguiam beber água das bolotas de orvalho nas folhas de capim-gordura. 

Pela janela, um homem grisalho espreitava o mundo. Desde a tarde da véspera ele vinha incomodado com aquele cantar ardido dos canarinhos. Ele achou tédio até no ramalhar dos galhos da figueira. Supôs que a tarde choveria. Cresceu os olhos para ver melhor as nuvens como véus entrelaçados ao azul do céu. Cresceu também os buraquinhos das narinas para sentir o cheiro daquele dia. Nada de novo. Achou o cheiro de café enjoativo. Na véspera o céu começou igualzinho e a tarde choveu. Que barulheira daquelas crianças! O homem pensou, enrugou a testa. Entre ele e elas havia um abismo. Um bando de rolinhas partiu de bem debaixo de sua janela, repicando asas de um jeito agitado. O homem assustou-se. Experimentou no cérebro o trepidar tremido daquele rumor, como um açoite por dentro. Ele amaldiçoou as rolinhas, os canarinhos. Amaldiçoou até as crianças, com risos insuportáveis. Ele coçou tão forte umas das bochechas que até a riscou, num arranhão. Ele blasfemou. Fechou as cortinas da janela com violência. Afundou-se às penumbras da casa.

Para ver o belo, a alegria, a luz, enfim, o novo; é preciso estar no agora. Estar plenamente no agora. Estar todinho no agora. Sem pré-ideias. Apenas o novo vem no fluxo da vida. O ramalhar da figueira está nesse fluxo. O pensamento é tempo e o tempo é ontem. Nossas ideias e conceitos decorrem do que vimos antes do agora-pleno. É ilusão, como achar que o céu é azul. Nosso entendimento é pura re-ação. Regurgito do já visto. Vivemos na reatividade. Na re-ativação de emoções. Mesmo o agora, o agora-pleno, não trazendo em si fatos exatamente coincidentes aos que geraram o entendimento, levantamos interpretações plenas de convicções de que seja o que pensamos que é. Puro pecado. Erro de alvo. Para ver o agora como ele é, temos que ser o novo, o simples. Os meninos com os gatos, por exemplo, não pensam neles mesmos ali naquela alegria. Há comunhão entre eles e os gatos, entre eles o chão, entre eles e a luz. Enfim, há unidade entre eles e todo o resto como tudo fosse uma nuvem. Estou querendo dizer que eles não estão pensando assim: este sou eu, este é o gato, esta é a manhã. Não. Eles experimentam ali uma sensação. Eles são essa sensação. Há um desligar-se do eu que são (ou que pensam ser). E é assim que tem que ser. Se nos isolamos no eu, somos o tempo, o fora do agora, o velho. Galhos cortados do tronco sofrendo pela falta da seiva. As crianças vivem fácil nesse pleno agora. Nesse frescor livre do ontem o dos nossos achismos. Vinde a nós as criancinhas. Ou melhor, vinde a nós “a criancinha”. Ou melhor ainda, vinde a nós o nosso eu-criancinha.


Nenhum comentário:

Postar um comentário